O Brasil é um país em desmonte. Em todas as áreas testemunhamos as ruínas de um país que conseguiu, por poucos anos, alimentar uma ilusão de progresso. Não bastassem as mortes simbólicas – da educação, cultura e ciência –, contamos os corpos das vítimas da pandemia de Covid-19, da violência doméstica – e daquela que espreita nas esquinas – e das inúmeras tentativas de silenciamento.
O escritor João Paulo Cuenca, autor de Descobri que estava morto, Corpo presente e O único final feliz para uma história de amor é um acidente, é mais recente artista perseguido pelo braço religioso do governo Bolsonaro, a Igreja Universal. O autor recebeu 80 ações judiciais de pastores da Universal apresentadas em 19 estados, após satirizar o chefe de Estado brasileiro e seus asseclas do clero da Universal em um tuíte.
No texto publicado em junho, Cuenca parafraseou o sacerdote católico francês Jean Meslier (1664 – 1729) e disse: “O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”. A sátira motivou uma campanha de linchamento virtual do escritor, que se viu achincalhado por sectários de Edir Macedo e por nomes conversadores da imprensa, como Rodrigo Constantino.
Para deixar ainda mais tensa a situação, Cuenca foi demitido da página brasileira do jornal alemão Deutsche Welle – que definiu a declaração como discurso do ódio. “O direito universal à liberdade de imprensa e de expressão continua sendo defendido, evidentemente, mas ele não se aplica no caso de tais declarações”, afirmou a publicação, ao que Cuenca respondeu: “É desconcertante ver um veículo alemão caindo no jogo persecutório de elementos fascistas no Brasil e me perguntar se ele teria feito a mesma coisa em outros momentos da história da Alemanha”.
Em alguma medida, esse cenário choca, mas não surpreende, e confirma que o Estado laico é um sonho tão lisérgico quanto o progresso e a ordem.
Em alguma medida, esse cenário choca, mas não surpreende, e confirma que o Estado laico é um sonho tão lisérgico quanto o progresso e a ordem. Se apenas o silêncio é capaz de deter o desejo de poder das instituições neopentecostais, chegou a hora de fazer barulho e gritar pela liberdade. As tentativas de intimidação sobre Cuenca, e tantos outros artistas, deflagram uma guerra contra os valores progressistas e a vontade de estabelecer um novo período de obscurantismo – além de funcionar como uma ditadura escondida sob as faces de uma democracia frágil e rachada.
Nessa distopia chamada Brasil, testemunhamos livros sendo queimados por quem não lê, exposições sendo invadidas por gente que jamais pisou em um museu, peças censuradas por quem não vai ao teatro. É um jogo bizarro de uma retórica pálida, mas que representa bastante bem o conservadorismo que sempre fez do nosso país a “piada no exterior” e que escondeu na figura do homem cordial uma agressividade latente – que ateia fogo em índios em pontos de ônibus e trata com normalidade a morte de uma criança que cai do apartamento em que mãe trabalha.
O silenciamento a João Paulo Cuenca é estrutural, faz parte da cultura brasileira de não criar conflito com os poderosos e que não é nada mais que um sintoma do medo crônico de uma nação que ainda se ajoelha diante do coronelismo, que fez arminha com uma mão e segura a bíblia com a outra. São as mesmas pessoas ameaçam o Padre Júlio Lancelotti – por dar de comer a quem tem fome – e que mataram Vladmir Herzog (1937 – 1975).
Para frear esse caminhão em chamas da censura é preciso mais e mais colocar em evidência as demandas de artistas, professores, educadores e demais setores prejudicados pelas políticas adotadas desde o ano passado. É fundamental que as classes se unam, que seja estabelecida uma frente ampla contra o fascismo e a censura, que as lideranças sociais, de classe e partidárias se afirmem antifascistas. É necessário dar nome às coisas e não deixar que as lembranças do nosso passado sombrio, que durou quase duas décadas, se apaguem e permitam que não saibamos observar o que virá.
A perseguição da Universal a João Paulo Cuenca é a aurora da escuridão, um reflexo do nosso fechar de olhos para a barbárie. E, por isso, mais que solidariedade, Cuenca, e qualquer outra pessoa vítima do obscurantismo, necessita ver ação, a justiça sendo feita pela razão e não por ideologias e afins. Basta.