Konstatinos Kaváfis certamente é um dos principais nomes da poesia grega moderna. Moderno, aqui, não significa apenas o que o termo habitualmente significa em textos sobre literatura. Quando lidamos com “literatura em língua grega”, estamos lidando com dois termos altamente difíceis de precisar: “literatura” (essa discussão já dura tempo demais e não quero entrar nela) e “língua grega”. O grego de Kaváfis não é o mesmo grego de Homero, assim como o grego de Platão não era o mesmo de Homero e Safo, por sua vez, usava ainda outro dialeto. O grego varia no tempo e no espaço. De resto, como todas as línguas.
Não sou especialista em grego e quero escrever sobre aquele que, talvez, seja o poema mais conhecido de Kaváfis: “À espera dos bárbaros”.
Traduções há várias. Vou me ater, basicamente, àquela de Haroldo de Campos (algo helenizante, causa um certo estranhamento – mas, remeto-me aqui aos formalistas russos, é precisamente esta a função precípua da arte). A tradução a que me refiro foi publicada na revista Remate de Males – Territórios da tradução, em 1984, com uma nota bastante interessante sobre o trabalho tradutório de Haroldo de Campos. Esta nota também pode ser encontrada no precioso Poemas de Konstatinos Kaváfis, publicado pela finada Cosac Naify, em 2012.
Ao poema.
Construído na forma de diálogo, perguntas e respostas, a cena é uma cidade decadente (levando-se em conta a “ágora” do primeiro verso e o “Senado” do terceiro, penso se tratar de uma cidade bizantina) que está, como diz o título, “à espera dos bárbaros”.
O estranhamento começa logo no primeiro verso: “que esperamos, reunidos na ágora?”. Certo. Os bárbaros estão para chegar e nós aqui, esperando? Não seria melhor armar-se para a guerra (aquela que, Anna Świrszczyńska que o diga, é horrível, mas deve ser lutada algumas vezes)? Não, nossos romanoi (o nome que os bizantinos davam a si mesmos) estão esperando na ágora: os bárbaros chegam hoje e não há nada que possamos fazer.
Impressiona-me esta resignação dos cidadãos.
Continuando, teremos:
“– Por que tanta abulia no Senado?
Por que assentam os Senadores? Por que não ditam normas?
Porque os bárbaros chegam hoje.
Que normas vão editar os Senadores?
Quando chegarem, os bárbaros ditarão as normas.”
O Senado deixou de funcionar. Docilmente deixaram de cumprir sua função, pois os bárbaros chegarão e eles mesmos passarão a fazer leis, decretos legislativos, normativas e todos os demais gêneros de textos legais. O medo da invasão dos bárbaros paralisou tudo o que poderia defender a cidade da invasão, do saque, da aniquilação.
O próprio autocrátor (palavra não dicionarizada, mas que significa algo como “imperador” e era o título do líder máximo do Império Bizantino) usa suas insígnias e coroas para, “à Porta Nobre da cidade”, receber o chefe dos bárbaros. Ao invés de se armarem, os cidadãos (e o seu líder) decidiram-se pelo mal menor: perdemos a independência, a dignidade, mas mantemos a vida.
O mecanismo de criação de um inimigo é, na verdade, olhar-se no espelho. Não é mesmo?
Os bárbaros não se importam com “tribunos […] a blasonar seu verbo, a perorar seus temas”, ao contrário, “desprezam a oratória e a logorreia”. Da logorreia (vizinhança fonética com palavras bem pouco elegantes) certamente pouquíssimos gostam; porém, num excelente poema de Zbigniew Herbert intitulado “O poder do gosto” (outra tradução possível: o poderio do gosto), somos lembrados de que também o gosto e a estética dizem muito sobre a vida e sobre a política.
O poema segue em tom desalentado, não há esperança possível: os bárbaros estão chegando. Os bárbaros, contudo, tardam e (como a justiça) falham. Diante decadência da cidade e da ameaça dos bárbaros, todos aguardam inquietos: os bárbaros chegarão. Algo acontecerá.
Contudo, o poeta nos surpreende: nada acontece. Transcrevo, aqui, os versos finais:
“[…] Por que de repente essa angústia,
esse atropelo? (Todos os rostos de súbito sérios!)
Por que rápidas se esvaziam ruas e praças
e os antes reunidos retornam atônitos às casas?
Por que a noite chegou e os bárbaros não vieram.
E pessoas recém-vindas da zona fronteiriça
murmuram que não há mais bárbaros.
E nós, como vamos passar sem os bárbaros?
Essa gente não rimava conosco, mas já era uma solução.”
A abulia do Senado, a parafernália, o povo reunido na ágora: tudo em vão. Os bárbaros não vieram, eles, justo eles, que seriam a salvação. O final do poema nos joga neste abismo e abre possibilidades interpretativas as mais várias.
Particularmente, defendo que os bárbaros não precisavam invadir. Não obstante, todos os mecanismos de defesa foram corroídos, todos esperavam, entre o amedrontado e o esperançoso (“quem espera sempre alcança / três vezes salve a esperança”), que os bárbaros chegassem. Mas eles não chegaram. E defendo que não chegaram pois já tinham chegado há muito. Talvez os bárbaros fossem o povo da cidade.
O mecanismo de criação de um inimigo é, na verdade, olhar-se no espelho. Não é mesmo?