São poucos os que nunca leram ou assistiram a alguma distopia. Além do interesse natural que essas obras despertam, a área teve forte fomento nos últimos anos: diversos lançamentos de sagas infanto-juvenis, como Jogos Vorazes ou Silo; aumento nas vendas de 1984 após a eleição de Trump; adaptações audiovisuais de livros como O Conto da Aia e Fahrenheit 451. Recentemente, aqui no Brasil, tivemos o relançamento de Nós, pela editora Aleph, a primeira distopia moderna escrita por Ievguêni Zamiátin.
Essa temática filosófica, presente principalmente na filosofia, na literatura e no cinema, aparece sempre em conjunto com sua antítese, a utopia. Inseparáveis, elas retratam o apetite humano pela busca de um lugar ideal. Tal paraíso terreno já foi corporificado de diversas maneiras: numa ilha isolada e pura, num passado repleto de abundâncias ou em um futuro revolucionário. No entanto, os bastidores dessa sociedade perfeita comportam a força opressora dos agentes do Estado ou das megacorporações. Naqueles excluídos do espaço da utopia, qualquer discordância é destruída. A individualidade não existe. A arte é proibida.
Como já abordei em uma entrevista realizada com o pesquisador Maurício Wajciekowski (disponível aqui), é possível destacar alguns elementos de dentro desse modelo, como o herói recém-consciente da sua estrutura social e o cenário autoritário como antagonista. Toda a construção é feita para que a miudeza do protagonista em relação ao sistema seja evidenciada e, também por isso, os desfechos sempre são o exílio ou a morte.
Além disso, é interessante destacar a fala do professor Alexander Meireles no minicurso sobre distopias sobre a presença de um sistema racionalista e o papel subversivo do feminino. Sendo a maioria dos protagonistas homens (e dos escritores também), a mulher tem o papel de guardar o sexo – sempre primitivo e irracional. É uma relação muito próxima à das narrativas religiosas que tratam a mulher como sedutora e portadora do pecado.
A ideia principal que fica nessa concepção é que toda utopia traz em si a semente da distopia. Enquanto criação humana, a utopia tem suas falhas expostas nessa espécie de narrativa espelho. Mas é possível fazer uma complementação, seguindo por um caminho como aquele da famosa frase do escritor Eduardo Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei”.
A ideia principal que fica nessa concepção é que toda utopia traz em si a semente da distopia. Enquanto criação humana, a utopia tem suas falhas expostas nessa espécie de narrativa espelho.
Em uma entrevista para o Observatório da Imprensa (disponível aqui), em 2015, Zygmunt Bauman discorreu sobre ideologias, política e, também, sobre utopia. Quase no fim da entrevista, o jornalista Alberto Dines relembra ao sociólogo que A Utopia, de Thomas More, fará quinhentos anos e pergunta como as revisões desse conceito serão vistas em um momento em que utopias, como a união de países inimigos num conjunto como a Europa, se transformam em distopias. A resposta de Bauman para ele é: “Meu querido Dines, você não acha que esse é o destino de todas as utopias? Utopia é criativa, é uma benção enquanto permanecer utopia. Porque ela guia os sonhos humanos, as ações humanas, lhes dá coragem para agir e coisas do tipo, mas quando dizemos que ela foi cumprida, aí que começa o problema, é aí que se transforma em distopia”.
A fala de Zygmunt Bauman evidencia uma etapa que parece esquecida na concepção de distopia como “antiutopia”. Quando colocamos a utopia como um ponto alcançável e inevitavelmente com falhas, a ideia do sonhar pode se transformar num caminho fadado ao fracasso e aumentar a sensação de desesperança, conformismo.
O que é preciso pensar quando falamos de distopia é que ela nos mostra como, apesar do um instinto de prevalência do cotidiano e do sedentarismo; ainda que queiramos acreditar nas nossas ideias como uma panaceia – um remédio para todos os males -, é preciso continuar no caminho por um futuro melhor, criado pelo diálogo entre todas as (dis)utopias. É preciso continuar caminhando – apesar de tudo.