Em 2012, Ann Morgan, uma mulher britânica, lançou-se em um projeto de leitura que, em um primeiro momento parece simples, mas que no fim provou-se revolucionário: ler pelo menos um bom exemplar de prosa (em sentido amplo) de cada país do mundo. O projeto foi batizado de Um ano lendo o mundo (ou, no original, A year of reading the world).
Em nossos tempos, temos muito orgulho de dizer que o mundo está todo interconectado. Acreditamos realmente que todos somos acessíveis e que a todos temos acesso. Ann Morgan aprendeu, por experiência própria, que a porta para algumas histórias está escancarada enquanto para outras fortemente fechada… Depois de seis anos, Ann Morgan fez uma fala em um evento TED e discutiu um pouco os seus aprendizados com o projeto de leitura que havia tocado.
Foram 196 países ao longo do ano e muitas histórias – lidas e vividas. A própria questão “o que é um país?” foi um dos primeiros desafios do projeto de leitura. Taiwan foi aceita em sua autodeterminação, mas a nação kurda não. Nalguns lugares, Morgan descobriu que não era do interesse dos governantes que textos literários locais saíssem pelo mundo. Outros lugares não haviam até então, em pleno século XXI, tido qualquer tradução para o inglês.
Foi o caso de Madagascar. Madagascar é uma das maiores ilhas do mundo, uma nação bem delineada, muito populosa – são mais de 22 milhões de pessoas – e mesmo assim o mundo anglófono não tinha sequer uma obra de prosa em longa extensão traduzida. Como era possível que nações tão grandes e ricas culturalmente eram invisíveis para os leitores em inglês?
Ann Morgan teve que ler uma coletânea de textos curtos para seu projeto de leitura e lamentar a perda. Essa descoberta de Morgan, no entanto, foi a fagulha de um grande projeto. Morgan possibilitou que, um tempo depois, a tradutora do francês para o inglês, Allison Charette, iniciasse uma jornada. Charette conseguiu financiamento para fazer a primeira tradução daquele país para a língua inglesa, uma tradução do escritor Naivo.
Foram 196 países ao longo do ano e muitas histórias – lidas e vividas. A própria questão “o que é um país?” foi um dos primeiros desafios do projeto de leitura.
Pelo projeto de leitura, Ann Morgan descobriu que um popular autor de Andorra, Albert Salvadó, teve que fazer uma autopublicação em ebook de uma tradução para o inglês da obra que o tornou famoso. Salvadó era um talento reconhecido em castelhano e em catalão, línguas em que o autor escreve, mas nunca em inglês. Essa foi uma das histórias com as quais Morgan entrou em contato e que atestam o quão importante é para as pessoas ter suas histórias ouvidas.
O esforço de tradução conjunto para que Morgan lesse alguns trabalhos também é algo incrível. Para ler a prosa de São Tomé e Príncipe em seu projeto se leitura, Morgan precisou de ajuda. Ela contou com uma tropa de lusófonos que voluntariamente traduziram excertos de uma obra. Seis semanas depois, a britânica pôde ler, finalmente, alguma obra do país vertida para o inglês. Fica inclusive a pergunta: nós, brasileiros, leitores com total fluência em língua portuguesa, alguma vez lemos algo de São Tomé e Príncipe? E por que não? Sequer somos capazes de responder. É do nosso lado autômato como leitor.
Mas as maiores ou mais difíceis lições que Morgan aprendeu com seu projeto de leitura foi perceber-se tão enviesada para alguém que se descrevia como “cosmopolita”. Foi ao ler a obra O Corsário (na tradução para o inglês como “The Corsair”), de Abdul Aziz Al Mahmoud, que a britânica estacou duas vezes. A primeira foi ao perceber como a história que ela conhecia do Império Britânico era sempre aquela que seus compatriotas contavam. Ela sabia que muitas vezes os britânicos haviam sido terríveis, mas não sabia o quanto.
O segundo choque foi quando contou ao autor que agora sabia que o Império Britânico havia sido o mais traiçoeiro nas disputas econômicas no golfo persa. De Al Mahmoud não veio um reconhecimento, mas um descrédito. Para ele, os britânicos não eram nem os heróis nem os bandidos! Os brits eram apenas mais um grupo dentre tantos naquelas disputas. O choque de descobrir a crueldade que perpetrou seu povo durante o século XIX foi um passo. Agora, o choque de perceber-se atribuindo protagonismo aos britânicos indevidamente foi um talvez ainda maior. Foram duas lições duras, mas saudáveis de se ter.
E para nós, apenas ao ler sobre o projeto de leitura de Ann Morgan, muitas questões se aglomeram. Em um país que lê tantas traduções e não tantas das suas próprias obras, de onde vêm os livros estrangeiros? Percebemos isso? Como nos sentimos quanto a isso? Por outro lado, vemos questionado o recorte literário que sofremos do mercado editorial e da crítica. Por que sabemos tanto de um espaço cultural e geográfico tão pequeno? A Europa é um dos menores de todos os continentes. Por que é tão confortável saber tanto sobre a literatura deles e tão pouco sobre, por exemplo, a literatura da Ásia, o maior de todos os continentes? É difícil, às vezes, esquecer que a arte é, inescapavelmente, também política.
Não precisamos ler o mundo em um ano, mas acho que vale a pena irmos começando logo…