Por mais incrível que possa parecer, o Brasil ainda não tinha se dedicado com seriedade à tradução ao português dos livros da maior escritora viva do Uruguai. Cristina Peri Rossi – hoje com 83 anos, e que vive radicada em Barcelona desde 1972 – está finalmente chegando aos seus potenciais leitores brasileiros, que agora poderão ter contato com a potente literatura desta autora que enfrentou ditaduras e criou uma obra rica sobre o seu país e sobre os desafios de crescer homossexual nesta realidade.
Um dos livros que agora conhecemos é A Insubmissa (editora Bazar do Tempo, 2025, tradução de Anita Rivera Guerra). Lançada em 2020, a obra é uma espécie de cruzamento entre um romance de formação e uma coletânea de contos que revisita a infância e a adolescência de Cristina, passando pela convivência com o pai violento, a obsessão pela mãe, até o crescimento em uma zona rural e a descoberta da homossexualidade. As histórias curtas se entrelaçam de maneira cronológica, e vão nos trazendo o desenvolvimento gradual de uma menina e mulher que, tal como o título sugere, não se curva às convenções.
A curiosidade infantil, reconhecida como natural por uma criação relativamente solta (em boa parte do tempo, ela viveu com os tios no interior do Uruguai), foi levando à formação de uma mente questionadora. Em entrevista à Folha de São Paulo, Peri Rossi trouxe um exemplo de como isso ocorria: “tudo me parecia tão difícil de compreender quanto assombroso – tanto na infância como agora. Só que, quando criança, eu aplicava a lógica para tentar entendê-lo. Por exemplo, se havia quatro meninas e um menino, o plural era ‘meninos’, não ‘meninas'”.
Em A Insubmissa, essa indignação viceja a partir do que tendemos a categorizar como a ingenuidade da criança. A pequena Cristina se espanta e se revolta com a diferença de tratamento entre meninos e meninas, mas também com o fato de que os mendigos (os “bichicomes”) precisem comer lixo e que duas adolescentes não possam se apaixonar sem que os pais tentem separá-las.
Retrato de uma rebelde quando jovem

Ler A Insubmissa traz uma percepção clara do porquê de Cristina Peri Rossi ser considerada uma grande autora – e que, talvez, tenha menos reconhecimento literário do que merece. Sua prosa franca e incisiva parece não ter sobras, levando o leitor a engajar com suas histórias de forma compulsiva: é difícil largar o livro antes do fim.
Afinal, estamos diante aqui da sedução oferecida por uma narrativa construída por meio da observação sagaz do seu entorno e da recuperação crítica das memórias da infância. É realmente fascinante ver a forma com que Cristina elabora no papel as personagens de sua família, por meio de estratégias de tridimensionalidade que nem sempre aparecem na literatura biográfica. A mãe é uma mulher submissa, temerosa da violência do marido, mas em nenhum momento é frágil; a tia, diretora de uma escola rural, rege a casa com firmeza e doçura; o tio solteirão, que odeia as mulheres e considera-as inferiores, é a mesma pessoa que proporciona a formação erudita à menina.
Ler A Insubmissa traz uma percepção clara do porquê de Cristina Peri Rossi ser considerada uma grande autora – e que, talvez, tenha menos reconhecimento literário do que merece.
Foi com este tio, um funcionário público de baixo escalão que mantinha uma biblioteca vasta em casa, que Cristina descobre uma dura verdade: a de que havia poucos livros de autoras mulheres. Questionado sobre a razão disso, o tio parece dar um argumento plausível: as mulheres que escrevem acabam se suicidando – estariam aí os casos de Virginia Woolf, Anfonsinap Storni e Safo para provar sua teoria. Mais uma vez, Cristina desobedece.
As lembranças são resgatadas e/ ou reelaboradas de maneira tocante. Alguns dos contos mais impactantes são os que tangem as histórias com o pai, um homem bruto que ninguém queria ver por perto, mas a cujas vontades a família se submetia. Em um destes capítulos (talvez o mais marcante do livro), há um embate entre a menina e o pai: ele a põe de castigo por alguma razão irrelevante e a mãe implora para que a criança peça desculpas para acabar com a tensão provocada por aquela situação.

Cristina, claro, não cede. E, em outro trecho, define assim esta relação com o pai: “não te amei. Não pude te amar. Não é possível amar alguém que causa tanto dano, mesmo que seja um dano inconsciente. E o fato de que eu não te amava te tornava mais hostil, mais violento, mais perseguidor, mais tortuoso, mais fracassado e mais solitário. Em vez de amor, você obteve meu terror. É um antigo e pavoroso recurso: aqueles que não conseguem ser amados às vezes conseguem ser temidos”.
Vencedora do prestigiado prêmio Miguel de Cervantes, Cristina Peri Rossi e reconhecida como a única mulher que fez parte do boom da literatura latino-americana – expressão usada para apontar o fenômeno cultural ocorridos entre as décadas de 1960 e 1970, e que projetou mundialmente autores como Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar e Carlos Fuentes.
Por razões óbvias, seu nome foi pouco destacado. Uma injustiça que o Brasil começa a corrigir em 2025 – e A Insubmissa é uma excelente entrada à obra desta autora.
A INSUBMISSA | Cristina Peri Rossi
Editora: Bazar do Tempo;
Tradução: Anita Rivera Guerra;
Tamanho: 208 págs.;
Lançamento: Maio, 2025.
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