Tisífone, Megera e Alecto, representando respectivamente o castigo, o rancor e o inominável, eram as denominadas fúrias na mitologia romana e erínias na mitologia grega, personificações da vingança responsáveis por punir os mortais. Eufemisticamente chamadas de “benevolentes” na peça do dramaturgo grego Ésquilo, as três residem no inframundo até serem convocadas para a Terra, a fim de realizarem o seu trabalho. No livro ganhador do prêmio Goncourt em 2006, As Benevolentes, elas são sutilmente intimadas por um ex-oficial da tropa de elite do Partido Nazista, Maximilien Aue.
Alemão de origem francesa que decide recontar suas experiências como oficial durante a Segunda Guerra Mundial, no momento pós-guerra em que começa a contar sua história, Maximilien atua como diretor de uma fábrica de rendas onde ninguém conhece seu passado. Ele compartilha, com detalhes, o que vivenciou desde sua entrada no exército alemão, passando pela batalha de Stalinigrado e pelo holocausto de judeus, até a fase de decadência do Terceiro Reich.
Muito embora Maximilien seja um personagem fictício, grande parte do que é narrado por ele aconteceu de fato. Ainda que os acontecimentos descritos não tenham ocorrido da maneira exata com que nos são transmitidos, a leitura de As Benevolentes não deixa de ser perturbadora. O calhamaço foi construído com base em uma vasta pesquisa histórica de Littell e por isso apresenta uma riqueza de detalhes comprováveis e impressionantes por sua crueza, especialmente no que diz respeito aos grandes massacres empreendidos pelo exército alemão. Por mais que estejam disponíveis inúmeros materiais histórico-artísticos que valem-se da Segunda Guerra Mundial como mote ou pano de fundo, a narrativa do autor norte-americano distingue-se por partir de um ponto de vista, no mínimo, inusitado: a ótica do carrasco obstinado.
Depois de anos do fim da guerra, Maximilien permanece indiferente ao mal que causou a carnificina da qual participou ativamente. Ele opõe-se ao arrependimento, adotando mesmo uma atitude acusatória, uma vez que que as chacinas não eram recriminadas por quem as assistia passivamente, mas, pelo contrário, ovacionadas como agradáveis espetáculos de horror. O protagonista anuncia ter feito parte de uma coletividade que naturalizava a violência, ser fruto de uma comunidade conformada com o holocausto e prova tal argumento com tamanha astúcia no decorrer das 896 páginas do romance que chega a causar mal-estar no leitor, impotente e culpado.
A narrativa do autor norte-americano distingue-se por partir de um ponto de vista, no mínimo, inusitado: a ótica do carrasco obstinado.
Como indivíduos integrantes de um corpo social, ao lermos comodamente as atrocidades narradas por Maximilien, em certa medida compactuamos com ela, o que é acusado mais de uma vez pelo cruel narrador. O ex-oficial da SS chega a garantir que se estivéssemos em seu lugar faríamos o mesmo que ele, e aponta, com dedos delatores, a omissão com que deixamos passar Hitler no passado e continuamos a aceitar, remissivos, tantas outras barbaridades, que possivelmente só serão censuradas no futuro, por quem estiver tão distante delas como hoje estamos do nazismo.
As descrições extremamente realistas dos conflitos bélicos são tão assombrosas quanto a estrutura narrativa proposta por Jonathan Littell, de modo a construir um personagem sem qualquer traço de redenção. Uma vez que nos afirma, logo na primeira página do relato, que não busca convencer ninguém de coisa alguma, nem tampouco expor quaisquer perversidades a ninguém que não a si mesmo, o protagonista age com naturalidade, sem pretensão de simular uma remição inexistente. Maquiavélico, Maximilien orgulha-se por ter feito o que parecia necessário para a obtenção do bem maior prometido pela ideologia nazifascista, justificando os meios através daquilo que seria o fim. Dotado de intelectualidade e retórica notáveis, o narrador é perigoso, capaz, sim, de seduzir e persuadir o interlocutor, convencendo-o por meio de seu discurso engenhoso.
Se de modo geral Maximilien reproduz o sistema político do nacional-socialismo alemão, individualmente ele representa uma figura psicologicamente perturbada. Não se pode declarar se o interior do protagonista é um espelho que reflete a podridão externa ou se o mundo narrado por ele é o reflexo de uma deterioração interna. Dentre tantas perturbações, é certamente o narcisismo a característica sobressalente de sua personalidade, presente em todas as suas relações interpessoais, em maior ou menor nível. Isso se afirma, sobretudo, no fato de a única pessoa por quem ele nutre uma estranha espécie de sentimento ser sua irmã gêmea, idêntica a ele.
A leitura de As Benevolentes incita a descrença, o vazio e a tristeza diante da revelação de uma humanidade decadente desde o passado. É também triste reconhecer aspectos da nossa atualidade que se assemelham ao período histórico descrito, aparentemente tão ultrapassado. São reconhecíveis a falta de empatia, a intolerância, a hipocrisia das grandes instituições e das pequenas relações humanas, tanto na narrativa quanto no agora, o que requer de quem enfrenta o livro um resistente equilíbrio emocional. O romance é doloroso, sem dúvidas, mas igualmente necessário, na medida em que a partir da denúncia do que já ocorreu, denuncia também, e com igual força, as mazelas do tempo presente, à espera das justiceiras benevolentes.
AS BENEVOLENTES | Jonathan Littell
Editora: Alfaguara;
Tradução: André Telles;
Tamanho: 912 págs.;
Lançamento: Setembro, 2007.