Intrigas palacianas, triângulos amorosos, traições, incesto e guerra pelo trono: parece Game of Thrones, mas nós estamos falando de Augustus, livro de John Williams (autor da obra-prima, Stoner), que conta a história de Caio Otávio, o primeiro imperador de Roma.
Aqui não tem dragão de gelo e zumbi, mas tem Cleópatra e gladiadores, por exemplo.
Sempre torci o nariz pra romance histórico e acho só fui perder um pouco do preconceito quando comecei a ler Bernard Cornwell e suas divertidas Crônicas Saxônicas. O engraçado é que com série ou filme nunca tive nada disso e o box da série Roma, da época da HBO de raiz, tá lá se exibindo cheio de DVD embolorado na estante de casa até hoje.
O livro escrito nos anos 70 por John Williams chegou recentemente às livrarias brasileiras e foi publicado pela editora Rádio Londres, com tradução de Alexandre Barbosa de Souza. A obra trata justamente do período apresentado lá pelo meio da série, quando o general Júlio César é sacaneado pelos seus amigos (“Até tu, Brutus?”, lembra? O Shakespeare lembra) e então cai no colo de seu jovem sobrinho, Caio Otávio, o dever de ir pra Roma, se livrar dos traíras e de quebra sair por aí conquistando o mundo, dando início a um dos mais fascinantes impérios de que se tem notícia. Tudo isso por volta de 45 a.C., bem antes de Nero tacar fogo (ok, a veracidade disso ainda se discute) e de Calígula tocar o foda-se (isso não se discute, certo?).
Seguindo uma linha meio Cidadão Kane, Williams amarra a narrativa através de cartas, diários, anotações, etc de diversas pessoas que, em algum momento, tiveram contato direto ou indireto com Caio Otávio (que depois mudou o nome para Augusto, quando se tornou imperador, isso depois de ficar usando o nome do tio, César, por um bom tempo, e de também ser chamado de César Otávio pelo povo, provando que os romanos tão nem aí se a vida do coitado do leitor vai virar um inferno pra saber de quem diabos essa gente está falando).
Seguindo uma linha meio Cidadão Kane, Williams amarra a narrativa através de cartas, diários, anotações, etc de diversas pessoas que, em algum momento, tiveram contato direto ou indireto com Caio Otávio.
A narrativa fragmentada através de múltiplos olhares é o que torna o livro extremamente interessante, mesmo para quem eventualmente já sabe essa história de trás pra frente. Isso porque a multiplicidade de vozes proporciona uma visão mais complexa, mesmo que ficcional, a respeito dos eventos, uma vez que em diversos momentos temos visões discrepantes a respeito de um mesmo evento observado por pessoas diferentes. Um exemplo interessante é Marco Antônio mandando carta pra Cleópatra pagando de machão guerreiro numa missão e depois um de seus soldados descrevendo as cagadas cometidas pelo mestre da cavalaria, contradizendo tudo o que ele dissera.
Essas visões contraditórias também fazem ampliar o fascínio por Augusto, já que nunca temos uma perspectiva chapada da figura do líder. A depender do interlocutor, ele era uma pessoa brilhante, petulante, humilde, inconsequente, estrategista, etc. O fato é que um piá de bosta que tinha apenas 18 anos quando tudo começou, junto com grandes aliados, fundou o Império Romano ao longo de várias décadas, então nem tinha como uma vida assim não ser impressionante.
Tal como em Stoner, temos aqui um romance de formação. E mesmo que as proporções sejam um pouquinho maiores (Stoner é “apenas” sobre um professor comum), em Augustus, John Williams mantém o seu olhar arguto para aquilo que há de mais humano nas pessoas, pois por mais que o personagem seja capaz de conquistas grandiosas, ainda assim persiste aquele peso um tanto melancólico, que vez ou outra escapa por detrás dos olhos daqueles que já não enxergam esperança no futuro ou orgulho no passado.
Compreender aquele contexto através de uma narrativa tão envolvente e “ver” aqueles personagens interagindo com figuras como os poetas Virgílio (Eneida) e Ovídio (Metamorfoses) faz com que tenhamos outra dimensão de suas obras. Inclusive, a morte de Virgílo (sim, o poeta já morreu, perdão pelo spoiler) é um dos momentos mais tristes do livro, principalmente pelo impacto que ela causa, pelo olhar que ela desperta. Williams demonstra a importância da poesia como uma forma de dizer um mundo interior que nem sempre conseguimos atravessar pelo verbo.
O curioso é que por mais que os personagens orbitem a figura do imperador, ainda assim há espaço suficiente para que eles próprios contem as suas histórias. Creio que a personagem mais interessante do livro, no fim das contas, seja Júlia, a filha de Augusto, que só aparece na segunda metade do livro. Ela é uma espécie de Arya Stark (Game of Thrones) que não conseguiu quebrar o sistema. Seu pai investiu muito em sua educação e fez com que ela enxergasse um mundo de possibilidades, porém os costumes e conveniências da época (poucas décadas antes de Cristo) a levam por um caminho um tanto desolador e que dialoga demais com as questões femininas que discutimos hoje, no século XXI. Não sei se já escreveram, mas ela bem que merecia um livro só sobre sua vida.
Já a desolação de Augusto me remeteu ao final de O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, uma vez que em ambas as obras vemos homens maduros que conquistaram algumas coisas muito importantes, perderam outras, viram o mundo se transformar num lugar em que eles já não cabem mais e, no computo geral, perceberam que isso tudo talvez nem tenha valido a pena, tendo em vista as experiências das quais tiveram que abrir mão e também toda a dor que causaram às pessoas que amavam durante esta jornada.
Augustus é daqueles livros que nos fazem ver que uma vida grandiosa muitas vezes é composta por diversas outras vidas que se tornaram pequenas, simplesmente porque foram esmagadas no meio do caminho.
AUGUSTUS | John Williams
Editora: Rádio Londres;
Tradução: Alexandre Barbosa de Souza;
Tamanho: 384 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2018.