Billy Budd foi o último texto escrito por Herman Melville, fechando com maestria uma carreira que já estava esquecida. Finalizada pouco antes da morte do autor, em 1891, a novela consumiu três anos para ficar pronta e só viu a luz do dia 35 anos mais tarde. Ainda que sua magnum opus seja Moby Dick, as sagas – breves e trágicas – do marinheiro Billy e do escrivão Bartleby figuram em uma tríade de seus trabalhos mais interessantes e, talvez, a história do Capitão Ahab nem encabece essa lista.
Pelo senso comum, Billy Budd é uma encenação para a parábola da luta entre o bem e o mal, cujo personagem principal, devido à sua beleza, é vítima de uma conspiração dentro do HMS Bellipotent, navio de guerra da Marinha britânica, e acaba por ser enforcado. Há quem diga que a história é uma metáfora homoerótica, haja vista a alcunha “Belo Marujo”, e as relações de desejo entrelaçadas ao longo do livro. Bernardo Carvalho, no prefácio da edição publicada pela finada Cosac Naify, conta que em “Billy Budd tudo é físico” e isso explicaria a dificuldade do mestre-d’armas Claggart de lidar com o desejo pelo jovem rapaz.
As coisas não são tão às claras no livro. E nem precisariam. Ao leitor cabe a interpretação – é sempre aquele papo de que a compressão da questão também faz parte da avaliação – daquilo que está nas páginas de Melville. Todos sabem que Billy é inocente na acusação de que teria tentado matar outro tripulante. Esse é o jogo no qual o leitor está enredado: mesmo narrado em terceira pessoa, é possível testemunhar a confusão toda pelos olhos do marujo; sentir a sua angústia e redenção de quem sabe que morrerá sem a culpa que lhe atribuem.
As coisas não são tão às claras no livro. E nem precisariam. Ao leitor cabe a interpretação daquilo que está nas páginas de Melville.
Na adaptação para o cinema, dirigida em 1962 por Peter Ustinov, o estreante Terence Stamp encarnaria Billy. Stamp – que mais tarde faria o homme fatale em Teorema, de Pasolini – se tornaria também padrão de beleza no cinema europeu naquela década. Infelizmente, anos mais tarde, sua carreira seria um catálogo de equívocos.
Jornada do herói
Mais ou menos na mesma época em que Melville escrevia Billy Budd, Wilde era condenado a dois anos de trabalhos forçados por “cometer atos imorais com diversos rapazes”. O processo, movido pelo Marquês de Queensbury – pai do Lorde Alfred Douglas, seu amante –, tinha como provas o romance O Retrato de Dorian Gray. O texto do irlandês é, obviamente, muito mais sarcástico e cínico que o do autor de Moby Dick, mas é de espantar a coragem por tratar do assunto.
Como em Bartleby, o escrivão, Melville faz de seu personagem um ser kafkiano – antes de Kafka começar a escrever – e, não com menos espanto, acaba como Josef K., “morto como um cão”. Caluniado, não consegue sair do labirinto imposto. A jornada do herói – linha narrativa que percorre da mítica grega à história cristã e, claro, diversos clássicos e fenômenos pop – é o grande fio condutor.
Para Cesare Pavese, no ensaio “O Baleeiro Literato”, que fecha o volume, o pulsar de Melville está na sua própria história, um sujeito que foi marinheiro e começou a escrever, com certa seriedade, já mais velho. A discussão sobre a gênese de Billy Budd ainda suscita estudos e curiosidade. Como toda obra com dignidade, a resposta está mais nos olhos de quem vê que na pena de quem escreve. E, por isso, ainda é uma história que vale a pena ser lida.
BILLY BUDD | Herman Melville
Editora: Cosac Naify;
Tradução: Alexandre Hubner;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Abril, 2003.