Aidentidade de Elena Ferrante, a misteriosa escritora italiana, permanece em segredo – apesar das suspeitas apontarem para alguns nomes. O que sabemos da autora de Um amor incômodo é muito pouco: uma mulher por volta dos 55 e 60 anos, que mora em andar muito alto de prédio e que tem (quem sabe duas ou três) filhas, porém, não há rastro de um possível companheiro. Como profissão, define a si mesma como professora e tradutora. Parte da história de Delia, por sinal, reflete a relação que tinha com a sua própria mãe.
Esses dados biográficos – que bem podem ser ficcionais – são o pouco que comenta durante as entrevistas que concedeu, em geral, por carta ou e-mail e que estão disponíveis em Frantumaglia: os caminhos de uma escritora, recém-publicado no Brasil. O volume, que abraça desde as primeiras cartas com os editores italianos até conversas mais recentes com jornalistas de todo o mundo, é uma tentativa de saciar a curiosidade da legião de leitores que criou ao redor do globo. Há uma interessante relação de curiosidade que, até então, só parecia acontecer os criadores da chamada literatura de entretenimento. Parece que o jogo virou.
A literatura surgiu na vida de Ferrante como uma catarse, se transformando em um projeto de vida – sempre negando que a escrita seja a sua profissão. ‘Escrevo quando quero’, afirma.
Frantumaglia é uma palavra dialetal, que não tem tradução específica em português, mas que pode ser explicada como uma angústia e ansiedade que tomam conta de homens e mulheres. O termo, por sinal, era dito com frequência pela mãe de Elena para descrever esse desconforto inexplicável. A figura materna percorre toda a obra de Ferrante e tem a mesma potência que a paterna para Kafka – um ser que, ao mesmo tempo, conforta e amedronta.
Segundo a autora, retratar as mulheres e se aventurar no íntimo de pessoas reais, explorar os meandros da sociedade e tentar encontrar uma razão para aquilo que se vê pelas janelas e portas das casas de classe média. “Toda vez que surge uma parte de você mesma não coerente com o feminino canônico, é possível sentir que aquela parte causa incômodo a você mesma e aos outros, que convém fazê-la desaparecer depressa. Ou, se a pessoa tem uma natureza combativa como a de Amalia [personagem de Um amor incômodo], como a de Lila [personagem da Série Napolitana], se é uma mulher que não se aquieta, que se recusa a ser subjugada, entra em cena a violência”, resumiu em conversa com seus editores Sandra Ozzola, Sandro Ferri e Eva Ferri, filha do casal.
Anonimato, não
A questão da ausência física/midiática está presente em boa parte das entrevistas que deu, principalmente até a publicação de Dias de abandono. Sobre o assunto, a autora é enfática: os livros não são anônimos, já que carregam uma assinatura na capa, mas quem escreveu é que não se faz presente do modo tradicional e que se espera de uma figura pública. Enquanto se dissipa, Elena permite que sua escrita flua sem compromisso com a exposição de sua vida real. É possível tocar em feridas muito íntimas sem ser julgada por isso. Essa posição que, para muitos, parece um ato de covardia é, na realidade, uma grande prova de coragem.
“Sempre tive a tendência de separar a vida cotidiana da escrita. Para tolerar a existência, mentimos, sobretudo a nós mesmos. Às vezes nos contamos belas fábulas, às vezes dizemos mentiras mesquinhas. As mentiras nos protegem, atenuam a dor, permitem que evitemos o susto de refletir seriamente, diluem os horrores do nosso tempo, salvam-nos de nós mesmos”, resumiu Ferrante à jornalista Stefania Scateni em 2002.
Frantumaglia se propõe a ser um autorretrato – não uma autobiografia – de uma mulher do seu tempo: com voz forte, culta e capaz de olhar o mundo em uma análise realista. É difícil concordar com quem teoriza que Elena Ferrante possa esconder Domenico Starnone, escritor e marido de Anita Raja, outra opção em alta cota nas bolsas de apostas literárias. E, de acordo com o que disse mais de uma vez em suas entrevistas, não acredita que sua falta de presença na mídia ajude a vender mais livros.
A literatura surgiu na vida de Ferrante como uma catarse, se transformando em um projeto de vida – sempre negando que a escrita seja a sua profissão. “Escrevo quando quero”, afirma. Após mais de duas décadas – seu livro de estreia foi publicado na Itália em 1995 –, ainda é possível ver o tom idealista de uma autora iniciante em contraponto com a precisão cirúrgica de um artesão da palavra já experiente. Essa pluralidade, que transparece na literatura que produz, ajuda a explicar um pouco do frenesi que causa nos leitores.
FRANTUMAGLIA | Elena Ferrante
Editora: Intrínseca;
Tradução: Marcello Lino;
Tamanho: 416 págs.;
Lançamento: Setembro,2017.