A literatura brasileira deve muito a Rubem Fonseca, pois entra ano e sai ano e o velhinho continua produzindo, continua sendo relevante. Mas por que este recluso escritor é tido como um dos maiores contistas do país (título ainda a ser decidido no par ou ímpar com o Dalton Trevisan)? Vejamos, do alto de seus 90 anos, isso mesmo, noventa anos, este senhor escreve com o absoluto domínio técnico que a experiência de vida lhe proporcionou, ao mesmo tempo em que avança com o entusiasmo e a insensatez de um escritor iniciante. E quando digo domínio técnico, não me refiro a movimentos calculados, já que a palavra mais apropriada para descrevê-lo é desordem, mas sim à segurança e confiança suficientes para compor personagens e cenários convincentes. O termo científico para isso é “Ele escreve pra caralho”. Sabe aquela vontade de contar histórias, chocar, incomodar e não apenas exibir a inteligência e a sabedoria adquiridas ao longo dos anos? É meio que isso. Rubem Fonseca acerta muitas vezes, erra tantas outras, mas o que interessa é que o tempo todo ele tenta cravar as unhas nas nossas feridas sociais.
Após um livro que me pareceu um pouco morno, Amálgama (só um pouco morno, ok? Pois ali tem até história de bebê sendo jogado no lixo), o autor volta a dialogar de maneira mais próxima com aquele universo imundo de Feliz Ano Novo, que a gente tanto gosta de chafurdar. Não que ele repita o feito daquela que talvez seja a sua obra mais impactante, bem longe disso, aliás; mas Histórias Curtas, lançado pela editora Nova Fronteira, em seus 38 contos, traz um pouquinho daquela crueza narrativa que esfrega a realidade na nossa cara de forma perturbadora, ao mesmo tempo em que não faz nenhum tipo de julgamento ou reflexão a respeito das atitudes dos personagens. As coisas são o que são, não há metafísica, Fonseca apenas nos mostra ações terríveis de maneira incomodamente objetiva e depois cada um pense o que quiser a respeito do que leu.
As frases geralmente são curtas e a linguagem é bem direta, mas não chega a haver aquela busca pelo mínimo do mínimo da expressão, como ocorre na obra do Dalton Trevisan. Os dois escritores compartilham um universo sujo e sombrio, bem como a obsessão pela repetição de temas, mas vejo que ainda há mais comunicação no mundo de Fonseca, mesmo que ela se dê menos pelo verbo do que pela violência. Descrever o ato silencioso do estrangulador, aquele faz calar até à morte, pode dizer muito sobre o mundo em que vivemos, por exemplo.
As frases geralmente são curtas e a linguagem é bem direta, mas não chega a haver aquela busca pelo mínimo do mínimo da expressão, como ocorre na obra do Dalton Trevisan.
Outro elemento que sempre esteve presente em sua obra surge aqui de maneira mais explícita e recorrente: a loucura. A insanidade presente na maioria das histórias é encarada como um elemento integrado ao cotidiano, uma vez que mais ninguém parece conseguir discernir o que é real ou socialmente inaceitável. Então não há muros separando mania, depressão ou psicose; uma vez que qualquer pessoa aparentemente estável pode apresentar um comportamento chocante de um parágrafo pra outro, em geral opta-se pela ilusão de controle via medicamentos.
Embora tenha momentos muito bons, num geral o livro não chega a empolgar muito, pois qualquer pessoa que tenha lido as obras anteriores sabe do que este velhinho é capaz, mas mesmo assim não deixa de ser gratificante encarar histórias fresquinhas vindas desta mente tão fascinante.
Há uma aleatoriedade na sequência e composição das histórias, como se houvesse um esforço em fazer parecer que alguns contos, com jeitão de incompletos, de esboço, estão ali no meio só para que o livro atinja um número x de páginas. Parece-me que estes textos, que não funcionam muito bem de forma isolada, acabam por ajudar a compor este painel insano que Rubem Fonseca está tentando criar. É algo como “deixa eu te contar uma bobagem aqui para te distrair, enquanto preparo terreno para o que vem no conto seguinte”. Às vezes funciona, mas só às vezes.
O próprio humor presente na obra não é dos mais convencionais. No conto “Viver”, o mais divertido do livro, um sujeito escapa de diversas situações catastróficas ao longo do dia para no fim ser surpreendido por algo que… que você verá quando ler. O caso é Rubem Fonseca cria uma situação engraçada aos moldes dos Irmãos Coen, os cineastas americanos. É aquele tipo de humor negro que você chega a gargalhar, para logo no minuto seguinte ficar meio constrangido e pensar que talvez não fosse o caso de rir, mas sim de ficar horrorizado.
Enfim, Histórias Curtas é um livro um pouco frágil em alguns pontos, mas é Rubem Fonseca sendo violento como sempre e insano como nunca. Não precisava de muito mais do que isso, certo?
HISTÓRIAS CURTAS | Rubem Fonseca
Editora: Nova Fronteira;
Tamanho: 117 págs.;
Lançamento: Abril, 2015.
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