Patti Smith sempre foi uma artista de jornadas. Seu primeiro livro, Seventh Heaven (1972), foi um mergulho em sua juventude e a saída da casa dos pais para tentar viver de poesia em Nova York. Horses (1975), seu disco de estreia, é uma ode à arte – e não apenas à música. Por isso, quando publicou Só Garotos (2010), seu mapa afetivo com o fotógrafo Robert Mapplethorpe (1946 – 1989), não foi de estranhar a profunda imersão em seu passado para recontar a sua história ao lado do amigo levado pela AIDS.
Seis anos depois, Patti voltaria ao hades para reencontrar Fred Sonic Smith (1949 – 1994), seu marido e lendário guitarrista de grupos como o MC5. Linha M. (Companhia das Letras, 204 págs.), que acaba de chegar às livrarias brasileiras, não é exatamente uma continuação do livro anteriores, mas pode bem funcionar como se fosse. O relato melancólico, escrito à mesa do Café ‘Ino em Nova York, revela uma mulher apaixonada pelo marido morto prematuramente. A falta de Fred é o que move o texto, mas a autora – chamar Patti de “escritora” é limitar seu talento – não se prende a um único e se deixa navegar por muitas memórias.
Sua relação com o café, e com os cafés, é tão obsessiva quanto a de David Lynch. Patti só desistiu de abrir seu próprio café quando Fred tirou a ideia de seus planos e prometeu à esposa uma viagem a qualquer lugar do mundo. E a escolha foi a Guiana Francesa. A jornada tinha um único objetivo: levar o solo de uma prisão na antiga colônia da França para o poeta Jean Genet (1910 – 1986). A beleza com que conta a viagem, e a amizade que o marido fez com um delegado graças ao álcool, é quase uma conversão. A paixão que exala de suas palavras impede o leitor de olhar com qualquer parcialidade, Patti Smith ganha o jogo sem usar qualquer regra que quebre as normas: são apenas as lembranças de uma mulher que se revisita.
A beleza com que conta a viagem, e a amizade que o marido fez com um delegado graças ao álcool, é quase uma conversão.
Linha M. é recheado de polaroides que testemunham a favor da artista: são a prova de que viveu tudo aquilo que escreveu. Tão confessional quanto qualquer coisa que já fez em sua vida, o livro, e tudo que o compõe, não parece uma invasão à privacidade de quem a escreveu, mas um convite para um café com pão integral e azeite – o cardápio de todos os dias de Patti no ‘Ino.
Hecatombe
Linha M. traz à luz uma outra paixão de sua autora: o escritor chileno Roberto Bolaño (1953 – 2003). Sua tentativa frustrada de compor um poema para o escritor de 2666 é relatada com certa melancolia e vergonha. Mas não faz mal. Em uma entrevista ao Estadão, Patti afirmou tê-lo acabado e que será o poema principal de um novo livro de poesia que deve lançar em breve. “Foi um desafio, e como era para Roberto eu queria que fosse tão bom quanto eu poderia fazer”, disse.
Patti falou poucas vezes à imprensa sobre Linha M., como se estivesse em contemplação ou o livro fosse uma grande oração aos seus mortos queridos e qualquer coisa dita a respeito profanasse aquele escrito sagrado. Entretanto, em um dos raros depoimentos, ao ser perguntada se o título se referia à linha M de Nova York, negou: “é minha consciência”. E não há outra certeza depois que fechamos o livro.
LINHA M. | Patti Smith
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Claudio Carina;
Tamanho: 216 págs.;
Lançamento: Março, 2016.