“Nascidos tarde demais para explorar os continentes, cedo demais para explorar as estrelas”: esta, talvez, seja a grande sina dos sonhadores da nossa geração. À medida que aumenta nosso conhecimento sobre a realidade que nos cerca (do complexo microcosmo das partículas subatômicas à geologia das ravinas vulcânicas no fundo do mar), escritores de ficção especulativa voltam seus olhares a fronteiras mais abstratas – como o futuro, as profundezas do cosmo ou as realidades contrastantes dos universos paralelos.
Nascido em 1890, H.P. Lovecraft, pai do horror cósmico e mestre do grotesco, teve a chance de explorar ambos aspectos, criando narrativas que percorrem territórios até então desconhecidos do globo terrestre e se estendem aos limites da galáxia – e da própria realidade. Ao longo de mais de 60 histórias (em sua maioria contos, com a ocasional novela), a prosa de Lovecraft arrasta o leitor ao terror oculto nos mais diversos espaços, de sítios arqueológicos perdidos no coração do deserto australiano às extensas terras oníricas, compostas de sonhos assombrosamente surreais.
Em uma época em que muito se discutia sobre a existência (ou não) de Deus, Lovecraft inovou ao reformular o problema – o questionamento central de sua obra se resume, basicamente, à seguinte pergunta: “E se nossos deuses fossem maus?” Ainda: e se, além de maus, eles fossem absolutamente insanos, imundos e grotescos além da imaginação? Seguindo essa problemática, o autor estabeleceu (com o auxílio de alguns contemporâneos, como August Derleth) o que hoje conhecemos como Cthulhu Mythos – uma cosmologia insana com mitos, lendas e um panteão próprios, uma extensa gama de divindades sombrias cujas anatomias desafiam a compreensão humana.
O que torna Nas Montanhas da Loucura a mais completa e coesa narrativa lovecraftiana é a extensão da obra e o lento trabalho de ambientação que o autor desenvolve.
Seu conto mais famoso, O Chamado de Cthulhu, é um exemplar perfeito da narrativa lovecraftiana, assim como A Cor que Caiu do Espaço e A Sombra Vinda do Tempo, mas é com a novela Nas Montanhas da Loucura que o autor eterniza sua voz como a mais tenebrosa dos primórdios da ficção de horror.
Horror além da compreensão
Todos os elementos clássicos de Lovecraft estão presentes: a história é narrada em primeira pessoa, um desabafo de um indivíduo (normalmente um acadêmico) que precisa relatar o horror cósmico/existencial descoberto de forma acidental durante uma típica expedição arqueológica ou científica da época. O que torna Nas Montanhas da Loucura a mais completa e coesa narrativa lovecraftiana é a extensão da obra e o lento trabalho de ambientação que o autor desenvolve desde o primeiro parágrafo, tecendo um panorama de abominável terror em um crescendo que culmina na insanidade absoluta.
O foco da trama é a exploração liderada pelo geólogo William Dyer, professor da fictícia Miskatonic University (recorrente nas obras do Cthulhu Mythos), à então pouco mapeada Antártica. Após a descoberta do cadáver de um estranho espécime de morfologia alienígena, descrita por Lovecraft com assustadora precisão, as investigações de Dyer e sua equipe revelam as ruínas de uma antiquíssima civilização interestelar. Ao explorar o local, fragmentos da verdadeira história ancestral da Terra emergem, levando os exploradores às mais terríveis conclusões sobre sua própria história e existência.
Do ponto de vista técnico, as marcas da escrita lovecraftiana são evidentes ao longo de toda a novela: a acuracidade nas descrições arqueológicas e biológicas (baseadas no extenso conhecimento do autor em diversas disciplinas, da história natural à geografia); o uso de adjetivos abstratos para descrever horrores inimagináveis, que desafiam a compreensão e o retrato visual; o domínio do fluxo narrativo, dando ritmo ao terror, que atinge seu ápice sombrio no clímax da história; e a intertextualidade – ou seja, a conexão entre as criações apresentadas na novela e a extensa mitologia estabelecida em suas outras obras (e de outros autores colaboradores do universo compartilhado do Cthulhu Mythos).
Portanto, Nas Montanhas da Loucura é minha recomendação para qualquer interessado em conhecer a influente obra de H.P. Lovecraft, pois fornece o mais completo vislumbre de uma mente criativa capaz das mais sinistras criações. Quanto ao nosso dilema inicial, posso dizer que ler Lovecraft me faz agradecer por ter nascido cedo demais para explorar as estrelas: afinal, se sua concepção do universo for real, se existem horrores similares ocultos no cerne do cosmo, é preferível permanecer aqui na Terra – não acha?
NAS MONTANHAS DA LOUCURA | H.P. Lovecraft
Editora: Hedra;
Tradução: Guilherme da Silva Braga;
Tamanho: 132 págs.;
Lançamento: Agosto, 2008 (atual edição).