Um dos argumentos mais preciosos na defesa da literatura é o papel que ela desempenha ao nos proporcionar uma vivência vicária, colocando-nos dentro dos sapatos de pessoas totalmente diferentes de nós. Isso significa dizer que os (bons) livros são, talvez, a única chance que tenhamos de realmente sairmos de nós mesmos e nos sentirmos outro(s), para além das representações redutoras que as outras mídias (além do senso comum) fazem de quase todo tipo de gente.
Lançado em 2013, Nevada (editora Todavia, 2024, tradução de Fernanda Abreu), romance da escritora Imogen Binnie, tornou-se quase imediatamente uma obra cult ao desenvolver uma história atípica acerca de uma pessoa trans. O livro nos apresenta uma personagem errante e carismática, a jovem Maria Griffiths, que vive no Brooklyn e tem um trabalho modorrento em um sebo, no qual está há anos. Ela também enfrenta uma crise no seu relacionamento com a namorada lésbica, mas tudo parece muito confuso para ela.
Há cerca de quatro anos, Maria fez a transição para tornar-se trans. Quebrando o que talvez seria o esperado a uma obra com este teor, Nevada não é exatamente uma história sobre o sofrimento, e muito menos uma trama batida de redenção. Tal como todos nós, sejamos pessoas trans ou não, Maria está perdida na falta de sentido de sua vida, enquanto reflete sobre os limites impostos pela sua identidade: ela simplesmente não aguenta mais pensar sobre a sua existência trans e tudo o que isso acarreta, mas não consegue fugir disso.
Um marco na literatura trans
A franqueza comovente de Imogen Binnie (ela mesma uma escritora trans) encontrou, ao longo da última década, grande repercussão entre essa comunidade, justamente porque ela consegue reproduzir, sem pretensão de construir uma obra magnânima nem definitiva, a experiência complexa e turbulenta das pessoas que passam por essa mudança – e que não tem nada a ver com o clichê vazio do “alma presa em um corpo errado”, conforme Maria esclarece.
A transexualidade chega à personagem não como uma resposta ao seu desencaixe existencial, uma vez que também a aproxima de outros tipos de dilemas. Há mais perguntas que respostas se contorcendo dentro de Maria – que segue ocupando uma espécie de não-lugar social, e carregando um estigma do qual não consegue escapar. E isso, conforme ela vai nos explicando, é simplesmente cansativo.
Imogen Binnie não traz nada de panfletário em Nevada. Sua Maria é uma mulher comum, aficcionada pela estética punk e pela cultura pop dos anos 90.
Imogen descreve assim, em certo trecho, a experiência de Maria: “se as pessoas olham para você e percebem que você é trans, elas ficam bem ansiosas para dizer isso na sua cara, independente de sua idade ou classe social. Meninos adolescentes gostam de falar coisas em voz alta para os amigos poderem sacar também, mulheres mais velhas gostam de dar uma piscadela ou um sorrisinho dissimulado, homens héteros que se acham legais dão um sorriso amarelo, mulheres héteros se comunicam discretamente pra dar a entender que sacaram tudo, meninos gays querem ser sua melhor amiga (com exceção dos militantes da causa gay, que acham que você está tentando roubar os direitos deles), e tem as sapatonas. As sapatonas são difíceis de decifrar”.
Mas mesmo com trechos como esse, Imogen Binnie não traz nada de panfletário em Nevada. Sua Maria é uma mulher comum, aficcionada pela estética punk e pela cultura pop dos anos 90 (há referências a discos como Live Through This, do Hole, e aos esquetes do Kids In The Hall). E, tipo, Maria meio que fala “tipo” e “meio” em quase todas as suas frases, trazendo essa pulsão urbana e algo niilista a um romance que fala sobre uma vida que, à primeira vista, pode parecer sem grandes propósitos.
Ou seja, não há exatamente uma história com grandes ápices em Nevada. Mas a narrativa começa a crescer quando Maria vai para a estrada e cruza com um outro personagem, o adolescente James, que trabalha em um Walmart na chatíssima cidade Star City, em Nevada (daí o título) e aparentemente só pensa em fumar maconha. O encontro entre os dois é o que dá sentido ao livro – mas dizer mais do que isso significaria entregar spoilers aqui.
É bem fácil entender o que tornou o romance de Imogen Binnie uma obra cult. Tal qual Camila Sosa Villada, ela parece reivindicar um espaço seu (e para os seus) para narrar, de maneira tridimensional, as questões das existências trans, a partir de personagens que pensam e falam sobre isso – mas que, obviamente, não são só isso.
Ao entregar aos seus leitores uma personagem que em nada parece perfeita ou admirável (Maria basicamente está jogando sua vida fora, meio em uma vibe total no future), Imogen Binnie também demanda que a literatura trans seja encarada como um gênero complexo como qualquer outro. Nevada é uma obra rica e provocativa em vários aspectos.
NEVADA | Imogen Binnie
Editora: Todavia;
Tradução: Fernanda Abreu;
Tamanho: 297 págs.;
Lançamento: Março, 2024.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.