Para os turistas, um passeio de riquixá na India ou na China é uma diversão. Poucos conhecerão os dramas que assolam ou assolaram, no passado, a vida dos puxadores de riquixá. Foi o que quis mostrar o romancista chinês Lao She, em O garoto do riquixá (Estação Liberdade, 2017, tradução de Márcia Schmaltz), originalmente publicado em 1937.
Ambientada em Pequim (Beijing), dos anos 1920 e 1930, o romance tem como personagem principal um jovem chinês que resolve se tornar um condutor de riquixá. Xiangzi vem do campo e orgulha-se de sua força física. Obcecado, quer comprar o próprio veículo. Para isto, não mede esforços para trabalhar e economizar dinheiro.
Quando enfim obtém seu riquixá, seu projeto é traído pelas vicissitudes. Na primeira vez, é pego por soldados chineses e o veículo é confiscado. Consegue fugir graças a um bando de camelos. Vende os animais, e recomeça com este pequeno capital. Devido a esta desventura, passa a ser conhecido pelo apelido Camelo.
O relacionamento com o ambicioso locador de riquixá Liu Si e sua filha Tigresa permite reconstruir sua vida, alugando outro riquixá. Segue na obsessão por comprar um novo riquixá, e seu temperamento antes afável, apesar de antissocial, passa a mudar:
“Sovina que era, não desperdiçava nenhum centavo. Quando não conseguia um emprego fixo, saía logo pela manhã com um riquixá alugado e só voltava quando atingia certa quantia diária, fizesse sol ou chuva, doessem-lhe ou não as pernas. Por vezes, passava um dia e uma noite inteiros sem parar. Assim tinha de ser e assim era! Antigamente, não disputava trabalho com outros trabalhadores, sobretudo se fossem velhos e deficientes. Sua força e seu riquixá eram muito superiores. Mas agora não tinha mais estes escrúpulos. Tudo o que via pela frente era dinheiro, quanto mais, melhor, e pouco lhe importava o tipo de trabalha ou com quem concorria. Feito uma hiena faminta, estava disposto a tudo. Ficava satisfeito apenas quando conseguia uma corrida, pois era a única esperança para comprar um carro novo.” (Página 64)
O garoto do riquixá é uma fábula que critica o individualismo dos novos tempos.
A despeito de seus planos, todos relacionamentos de trabalho acabam travando sua vida. Um emprego fixo, com bons patrões, também se torna uma armadilha. O patrão é perseguido por conta de suas ideias políticas. Xiangzi acaba sofrendo as consequências. Para proteger o patrão, é extorquido por um agente policial.
De novo sem nem um tostão, é obrigado a recorrer aos Liu. Tigresa sugere que agrade seu pai no aniversário dele. Nesta ocasião, a mulher aproveita para abandonar Liu Si e seguir Xiangzi. Eles vão morar num cortiço e esta fase marca a decadência do puxador de riquixá. Em sua decadência final, já sozinho, tudo passa a girar em torno do dinheiro.
O garoto do riquixá é uma fábula que critica o individualismo dos novos tempos. Xiangzi não se importa com nada além de comprar seu riquixá. Seu sonho é frustrado por duas vezes, e ele afunda por não saber como se livrar das enrascadas políticas e de relacionamentos familiares. O narrador é todo o tempo empático a Xiangzi, descrevendo seus infortúnios. Com a sucessão de desgraças, o caráter honesto e esperançoso de Xiangzi se debilita e ele se torna tão asqueroso quanto Liu Si e Tigresa.
Lao She (pseudônimo de SHU QINGCHUN) nasceu em Beijing, em 3 de fevereiro de 1899. Órfão de pai desde novo, não pôde estudar até a idade dos nove anos, em função da falta de recursos da família. Mas conseguiu frequentar a Universidade de Beijing, onde se formou em 1918. Foi diretor em escolas primárias e secundárias tanto em Beijing quanto em Tianjin. Teve uma primeira estada no Ocidente entre 1924 e 1929, em Londres, onde atuou como professor de chinês e escreveu suas primeiras novelas.
O apreço pelos livros de Charles Dickens, com foco sobre os marginalizados, certamente influenciaria Lao She na elaboração de O garoto do riquixá. De volta a seu país em 1930, tornou-se rapidamente um dos intelectuais mais críticos à invasão japonesa à China ocorrida em 1937. Após a Segunda Guerra, viveu um período nos Estados Unidos, até retornar em definitivo ao seu país-natal. Outras de suas obras incluem o romance Mao chéng ji [Cidade dos gatos, 1932] e a peça de teatro Chágan [O salão de chá, 1956]. Faleceu em 24 de agosto 1966, no apogeu da Revolução Cultural, depois de, acusado juntamente com outros companheiros de ser inimigo do regime, ter sido torturado pelos guardas vermelhos – embora a causa mortis oficial seja “suicídio”.
O GAROTO DO RIQUIXÁ | Lao She
Editora: Estação Liberdade;
Tradução: Márcia Schmaltz;
Tamanho: 336 págs.;
Lançamento: Julho, 2017.