Em O que os psiquiatras não te contam, Juliana Belo Diniz realiza um gesto raro no debate público sobre saúde mental: devolve complexidade a um campo que, nas últimas décadas, foi comprimido por explicações apressadas e metáforas sedutoras sobre “dopamina”, “química cerebral” e “reprogramação neuronal”. Publicado pela Editora Fósforo, o livro se insere numa tradição crítica que questiona o biologicismo hegemônico, mas evita o desfiladeiro fácil do antipsiquiatrismo. Em vez disso, Diniz opera num espaço intermediário — rigoroso, ambivalente, por vezes desconfortável — no qual reconhece a importância dos tratamentos medicamentosos, ao mesmo tempo em que expõe seus limites.
O mérito central da obra está em desmontar, com sólida argumentação e linguagem acessível, a narrativa de que transtornos psiquiátricos seriam essencialmente defeitos do cérebro. Diniz revisita a história da neurociência e da psicofarmacologia para demonstrar que a maior parte das descobertas que embasam a psiquiatria contemporânea surgiu de acidentes experimentais ou correlações pouco robustas. Ela lembra ao leitor que até hoje não há marcadores biológicos para diagnosticar depressão, ansiedade ou pânico — e que a promessa de que um dia haverá, embora cientificamente atraente, repousa mais no desejo de precisão do que nas evidências disponíveis.
O mérito central da obra está em desmontar, com sólida argumentação e linguagem acessível, a narrativa de que transtornos psiquiátricos seriam essencialmente defeitos do cérebro.
Esse desmonte não é feito por oposição à ciência, mas em nome dela. A autora, com décadas de experiência acadêmica e clínica, recupera o espírito cético que deveria orientar a produção científica, frequentemente distorcido por pressões institucionais e pelo marketing farmacêutico. Ao narrar congressos, dilemas éticos e casos clínicos, ela evidencia como a psiquiatria contemporânea enfrenta uma tensão entre duas vocações: a de se afirmar como especialidade biológica, amparada em exames e moléculas, e a de preservar seu caráter histórico de escuta e interpretação.
Em diálogo com pensadores como Canguilhem e Ortega, Diniz sustenta que os sintomas emocionais não existem fora das histórias que os contextualizam. É nesse ponto que O que os psiquiatras não te contam supera a esfera da divulgação científica e se aproxima de um ensaio socioantropológico. A autora articula determinantes sociais — precarização do trabalho, desigualdade, violência, expectativas de produtividade — à experiência subjetiva do sofrimento. Ao fazê-lo, contribui para recolocar o sofrimento psíquico no mundo, em vez de confiná-lo no cérebro.

Ainda que se trate de um livro de psiquiatria, sua relevância ultrapassa o público especializado. Num contexto em que discursos “neuro” dominam redes sociais, reportagens, palestras motivacionais e até políticas públicas, O que os psiquiatras não te contam funciona como antídoto contra a simplificação. A autora não desautoriza a neurociência; apenas lembra que ela não pode responder sozinha por fenômenos humanos complexos. Juliana Belo Diniz não rejeita os medicamentos, mas devolve-lhes uma escala mais humana, menos mítica.
Em sua crítica aos reducionismos, a obra defende uma psiquiatria que recupere o tempo da conversa, da dúvida, da imprecisão — tempo cada vez mais raro num sistema que privilegia consultas rápidas e protocolos rígidos. Se há uma tese política no livro, ela está na recusa de tratar pessoas como máquinas defeituosas. Ao enfatizar que “ninguém vai saber o que te deprime olhando seus neurônios”, Diniz recupera uma dimensão ética: a do cuidado que não se limita à química nem à eficiência.
Sem oferecer soluções fáceis, O que os psiquiatras não te contam propõe uma mudança de perspectiva — mais exigente, mais lenta, mais humana. Em um mercado editorial saturado por promessas de autoconhecimento instantâneo e hacks de cérebro, a obra se destaca pela coragem de admitir incertezas e expor as fronteiras do próprio saber psiquiátrico. É também um convite para repensar o modo como entendemos o sofrimento, e para reconhecer que o caminho para o alívio talvez passe menos por “corrigir sinapses” e mais por reconstruir histórias, vínculos e contextos.
O QUE OS PSIQUIATRAS NÃO TE CONTAM | Juliana Belo Diniz
Editora: Fósforo;
Tamanho: 256 págs.;
Lançamento: Março, 2025.
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