Não importa se você acredita ou não na distinção subjetiva entre belles-lettres e best-sellers, ou na existência de uma “Literatura” que se eleva sobre a outra “literatura”, tornando-se digna de um L maiúsculo: fato é que certas obras, dotadas de grande carga filosófica e/ou alto valor estético, transcendem limites geográficos e temporais, tornando-se clássicos universais e tesouros socioculturais da própria humanidade. Por isso, quando falamos do grande cânone do romance ocidental, falamos de obras que permitem sucessivas releituras, e que atingem novos níveis de interpretação e significado com a passagem dos tempos, permanecendo atuais em sua abordagem da condição humana.
Em todos esses aspectos, Os Irmãos Karamázov, primoroso romance filosófico de Fiódor Dostoiévski, é um clássico inegável. Ainda hoje, os conflitos existenciais envolvendo o devasso Fiódor Karamázov e seus três filhos (Dmitri, Ivan e Aliócha) fundamentam as mais complexas discussões acerca da moral, da ética e da própria existência de Deus, sendo citado com frequência em debates entre ateus e apologistas cristãos. Repleto de passagens memoráveis, como o julgamento de Dmitri ou o encontro surreal de Ivan Karamázov com a encarnação do diabo, o romance exige novas análises à luz de novos tempos – e, tratando-se de um mestre da escuridão humana como Dostoiévski, o livro se torna especialmente importante em tempos sombrios como estes que vivemos hoje.
Como muitos outros profissionais ligados ao jornalismo e à cultura, assisti incrédulo ao espetáculo dantesco que irrompeu diante da exposição Queermuseu, promovida pelo banco Santander. Motivados em parte por ignorância artística, em partes por revolta religiosa, os opositores da arte “perversa” dão agora início a uma pavorosa inquisição cultural, em que tudo o que não se encaixa no padrão dos “bons costumes” deve ser varrido de vista para sempre. Ao analisar a repercussão do caso, não pude deixar de pensar em Dostoiévski – e retirei da estante Os Irmãos Karamázov para reler aquela que é, talvez, a mais célebre passagem do romance: a parábola “d’O Grande Inquisidor”.
Acima dos Céus
Concebida por Ivan Karamázov como um poema (que jamais escreveu de fato), a parábola é narrada em diálogo como o ponto chave da discussão entre seu autor, o cético, e o irmão caçula Aliócha, “puro e místico”, acerca da moral humana e seu condicionamento (ou não) à existência de um Deus. Trata-se de um exemplo magistral de uma história dentro de uma história, um conto concêntrico que atinge níveis semânticos e metalinguísticos profundos; nas mãos de um escritor menor, certamente serviria de material para um romance inteiro. Dostoiévski, é claro, não se contenta com isso, e nos apresenta essa narrativa de raízes mitológicas diversas como apenas uma das peças principais de um quebra-cabeças existencial infinitamente complexo.
Tratando-se de um mestre da escuridão humana como Dostoiévski, o livro se torna especialmente importante em tempos sombrios como estes que vivemos hoje.
O poema de Ivan se passa em Sevilha, no auge da Inquisição espanhola, e apresenta um cenário fantástico no qual Cristo renascido, após comprovar sua divindade ao povo por meio de milagres, é preso pelo velho cardeal Grande Inquisidor, que condenou centenas de hereges às fogueiras e cuja autoridade o pobre e pio povo da cidade respeita acima das próprias leis divinas. Enquanto o Messias aprisionado nada fala, o Grande Inquisidor profere seu monólogo, explicando a Cristo que a Igreja não tem necessidade de sua presença, e que seu retorno imprevisto só atrapalharia a salvação da humanidade.
De acordo com o cardeal, Cristo teria condenado a maior parte da espécie humana ao Inferno ao recusar as três tentações oferecidas pelo Demônio no deserto (transformar pedra em pão, atirar-se de um precipício para comprovar sua natureza divina e dominar todos os reinos do mundo dos homens). Desta forma, o filho de Deus teria reservado a salvação eterna apenas aos mais fortes, ou seja, aos seus próprios eleitos. Analisando cada uma dessas três propostas, o Grande Inquisidor revela sua concepção de uma sociedade verdadeiramente justa e moral, na qual o povo, submetido à autoridade absoluta da Igreja (única detentora do milagre e do mistério), viveria feliz em submissão e pecado, enquanto apenas alguns escolhidos – os membros do próprio clero – agiriam como os últimos mártires, tomando para si as dores e pecados do mundo.
Desta forma, o Grande Inquisidor coloca a si mesmo e aos outros de sua congregação como os máximos arautos da moral, acima da ética humana ou mesmo celestial. Após essa reflexão, o monólogo conclui com o velho cardeal declarando sua intenção de levar Cristo à fogueira ao amanhecer, reiterando que o próprio povo, submisso à sua autoridade, forneceria o carvão e as centelhas necessárias para o fogo.
Reflexões atemporais
Não é preciso aprofundar-se demasiadamente na riquíssima simbologia da parábola para compreender que se trata de um objeto passível das mais diversas análises, e que muito tem a dizer sobre a existência humana, o ego e nossa relação constantemente metamórfica com a ética e a moral.
À luz de Dostoiévski, mesmo os recentes desdobramentos culturais e sociopolíticos do Brasil podem ser analisados com maior clareza. Afinal, a figura do Grande Inquisidor encontra paralelos nas mais diversas esferas de nossa sociedade: à frente de igrejas, no comando de fisiológicos partidos políticos e encabeçando movimentos de censura à arte, diversidade e cultura nacional.
Neste cenário, o verdadeiro desfecho do poema – revelado por Ivan após questionamentos de Aliócha – é um ponto crucial e que deveria ser de conhecimento de todos os envolvidos no suposto “escândalo”. Ao término do monólogo do Grande Inquisidor, Cristo renascido, que palavra alguma proferiu até então, dá um beijo nos lábios do velho. Surpreendido e desconcertado pelo gesto de silêncio e amor, o cardeal pede a Cristo que parta – e que nunca mais retorne.
Deixo abertas as conclusões a vocês, leitores, e imploro: leiam e releiam Dostoiévski. Em tempos de sombras, todos precisamos dessa luz.
OS IRMÃOS KARAMÁZOV | Fiódor Dostoiévski
Editora: Editora 34;
Tradução: Paulo Bezerra;
Tamanho: 1040 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2008.