A capa horrível (também utilizada em outros países) dá a entender que se trata de um livro meio besta recomendado exclusivamente para mulheres que gostem de livros meio bestas. Parece o famigerado “livro de mulherzinha”, seja lá o que isso signifique em termos comerciais ou no universo dos discursos machistas. A ideia de afastar o público masculino de um livro que trata justamente de problemas causados pelos homens parece um baita erro de estratégia, mas felizmente a história acabou virando uma ótima produção da HBO e o livro conseguiu se livrar das limitações de nicho. Depois, ele foi relançado com a capa da série (oh, editoras, quando vocês entenderão que o leitor acha isso uma merda?), mas nesse momento, boa parte do público já sabia que se tratava de coisa boa.
Queimei a cara andando por aí com um livro contendo um pirulito colorido explodindo em tons de lilás na capa, mas devo dizer que o esforço foi plenamente recompensado pela prosa viciante da australiana, Liane Moriarty.
Pequenas Grandes Mentiras, lançado no Brasil pela editora Intrínseca, com tradução de Adalgisa Campos da Silva, fala sobre um grupo de mulheres, a maioria com jeitão de socialite, que se conhecem no primeiro dia de aula de seus filhos em uma escola pública infantil (escola pública australiana não tem relação alguma com essa escola pública brasileira que você imaginou, diga-se). Uma acusação de agressão envolvendo as crianças dá início a uma série de conflitos que vão tomando proporções cada vez maiores, abalando parte do teatrinho social daquelas pessoas.
Uma coisa muito interessante na forma como Moriarty estruturou a história é que, desde o início, temos acesso ao depoimento de diversas testemunhas, então ficamos sabendo que tempos depois daquele primeiro dia de aula houve um evento para arrecadação de fundos na escola e que alguém foi assassinado, porém, não sabemos quem matou e muito menos quem morreu. É isso mesmo, uma narrativa policial em que não sabemos nem quem é o cadáver. A história vai sendo contada em forma de flashback e o mistério é mantido até o último momento. Até lá, resta ao leitor ir tentando juntar as peças e descobrir porque diabos um pequeno conflito na escola levaria alguém a cometer um assassinato.
Madeline é uma personagem encantadora e seus diálogos certeiros são responsáveis pelo núcleo mais cômico e ácido da história. Ela é a protagonista que acaba unindo os universos bem díspares de Jane (pobre) e Celeste (milionária).
Acompanhamos tudo pela perspectiva de três personagens principais: Jane, uma jovem mãe solteira recém-chegada na cidade. Madeline, uma mulher adorável, cheia de personalidade e que enfrenta as dificuldades de criar uma filha adolescente, fruto de seu casamento anterior. E, por último, Celeste, uma mulher absurdamente linda que parece viver num mundo perfeito com seu marido perfeito e seus dois filhos gêmeos perfeitos.
Madeline é uma personagem encantadora (mais do que na série, inclusive) e seus diálogos certeiros são responsáveis pelo núcleo mais cômico e ácido da história. Ela é a protagonista que acaba unindo os universos bem díspares de Jane (pobre) e Celeste (milionária), de modo muito tranquilo e orgânico, sem os dramas novelescos que poderiam sair daí.
Jane possui um drama pessoal que faz movimentar a trama com o mistério envolvendo a paternidade de seu filho. Um de seus relatos sobre um ato de violência sofrido no passado é uma das coisas mais perturbadoras do livro e que a série passou um pouco longe de conseguir dar a mesma dimensão que vemos na história original.
A percepção inicial de que aquela historinha sobre um monte de gente rica de “mimimi” porque as crianças brigaram na escola não passa de white people problems acaba caindo por terra não apenas após o relato brutal de Jane, mas principalmente quando passamos a conhecer melhor Celeste. É a partir dos dramas dessa personagem que o leitor começa a perceber que está lendo algo com camadas mais profundas do que apenas uma história de mistério policial.
O livro demonstra, com riqueza de detalhes, as engrenagens de um relacionamento abusivo. Estão lá todos os relatos perturbadores de violência física, o desespero de esconder as marcas pelo corpo e tentar manter as aparências diante dos filhos e dos amigos, o comportamento condicionado pelo medo, os discursos machistas, a perversidade da violência psicológica e as possibilidades de ajuda. A história de Celeste é uma espécie de viagem ao inferno da sala de estar e Moriarty em momento algum tenta aliviar ou tornar aquela merda toda algo poético.
Curiosamente, toda essa questão não serve apenas de acessório panfletário, pois trata-se de um elemento fundamental para desenvolver as nuances das personagens e, principalmente, para dar seguimento à narrativa.
A série é relativamente fiel ao livro. As principais diferenças estão na composição da personagem Madeline, já que na história original ela não se envolve naqueles dramas todos e creio que eles só foram inseridos numa tentativa de apresentar uma personagem com caráter mais dúbio, de modo a humanizá-la através dos seus erros. E a produção da HBO também não explora alguns detalhes sobre o passado de Jane que são fundamentais para compreender e tornar crível aquilo que na série parece apenas coincidência.
Enfim, Pequenas Grandes Mentiras consegue o feito de ser uma narrativa viciante, bem escrita e cheia de ganchos que te deixam grudado no próximo capítulo. Também é um livro bem-humorado, repleto de críticas mordazes aos modelos familiares, aos protocolos sociais e à constante busca por valores cada vez mais artificiais na criação dos filhos. E, ao mesmo tempo, consegue ser um livro tão impactante quanto relevante (dá até pra dizer didático, no bom sentido) no que diz respeito à gravidade da questão da violência contra mulher e à luta diária para nos tornarmos minimamente civilizados.
E parecia apenas uma historinha policial…
PEQUENAS GRANDES MENTIRAS | Liane Moriarty
Editora: Intrínseca;
Tradução: Adalgisa Campos da Silva;
Tamanho: 400 págs.;
Lançamento: Março, 2015.