Do que é feito um gênio? Qualquer pessoa que nutra interesse pelas grandes mentes de nosso tempo deve ter se colocado essa pergunta em algum momento. E, ao menos recentemente, há uma discussão recorrente sobre a possibilidade (ou não) de se separar sujeito e obra, uma vez que vários dos intelectuais mais brilhantes que conhecemos teriam sido pessoas complicadíssimas.
Mas poucos têm a chance de realmente conviver com alguém genial – ou melhor, uma mulher genial. E este foi o caso da premiada escritora Sigrid Nunez, que conviveu por bons anos com a pensadora Susan Sontag durante os anos 1970. Sigrid namorava David, filho de Susan, e morou com os dois em seu famoso apartamento em Manhattan. São as memórias desse tempo que ela registrou em 2011 no livro Sempre Susan (editora Instante, 2023, tradução Carla Fortino).
A obra é uma visita leve, mas incisiva, à intimidade da grande ensaísta, revelando detalhes sobre sua personalidade e sobre a forma com a qual ela encarava a vida. Sempre Susan é menos sobre o pensamento consolidado por Susan em suas ideias e mais sobre a forma com que entendia que uma existência baseada na busca pelo conhecimento deveria ser.
Por isso mesmo, o livro de Sigrid Nunez demanda de certa contextualização. Lê-lo em 2025, a partir de uma realidade calcada na desigualdade social e em uma certa ojeriza à intelectualidade, como a brasileira, pode fazer com que Susan Sontag seja julgada como meramente uma pessoa arrogante – e, de fato, ela tinha esse fama. Mas as palavras ternas de Sigrid nos fazem também ver o quão peculiar era a pensadora; por isso mesmo, uma pessoa fascinante e definitivamente sempre à frente do seu tempo.
Susan Sontag: entre a arrogância e a genialidade

Falecida em 2004, quando contava 71 anos, Susan Sontag foi considerada tão brilhante quanto polêmica. As ideias que consolidou em seus livros e ensaios mais famosos (como Contra a Interpretação, de 1966; A Doença Como Metáfora, de 1978; e o ensaio “Notas sobre o camp“, de 1964) levaram com que ela se tornasse admirada como uma intelectual cuja fama ultrapassa a vida acadêmica. Ao longo de sua vida (principalmente depois que se deu conta que estava ganhando menos dinheiro com seu trabalho do que seus colegas), Susan estrelou comerciais, era citada em humorísticos como Saturday Night Live e até apareceu em Zelig, filme de Woody Allen, como ela mesma.
Um dia, Susan resolve contratar uma assistente que a ajudasse no seu trabalho. Ela simplesmente detestava ficar sozinha – o que talvez explique a relação que tinha com o filho David, que morou com ela até a vida adulta, enquanto a mãe relutava firmemente de um dia ele fosse embora. Essa assistente (Sigrid) tornou-se uma testemunha ocular não apenas da sua obra, mas da sua vida naquilo que tinha de mais privado. Sigrid tinha então 25 anos e Susan tinha 43 e se recuperava de um câncer agressivo.
O que Sempre Susan nos apresenta não deixa de ser uma bisbilhotice, como se abríssemos a gaveta de roupas íntimas de Susan Sontag sem muito pudor. Descobrimos então várias peculiaridades sobre esta intelectual, como o fato de que nunca se cozinhava na sua casa, e que Susan considerava um pacote de bacon uma refeição completa. Há detalhes também sobre sua estética (a pensadora sempre chamou atenção pela beleza): a famosa mecha branca em seu espesso cabelo preto era, na verdade, a única parte dele que não tinha tinta.

Mas o mais interessante neste livro é notar o tom paradoxal que Sigrid anota para tratar de Susan, em uma postura que mistura reverência com alguma dose de menosprezo. Entende-se desde o início que havia tensão na relação entre as duas, e que Susan Sontag era implacável, não só com sua pupila, mas com todos em sua volta. Sigrid, não obstante, parece disposta a recapitular a mestra em suas particularidades, que a colocavam como uma pessoa tão genial quanto insuportável.
Aprendemos, por exemplo, que Susan era uma aficcionada pela beleza e podia enxergá-la em qualquer um. Sua generosidade, no entanto, era destinada a tudo que era humano: “Nunca conheci alguém que apreciasse mais o belo na arte e na aparência física humana do que Susan (…), e, no entanto, nunca conheci ninguém menos tocado pelas belezas da natureza”.
Susan Sontag foi uma mulher que desafiou todas as convenções do seu gênero para ser quem queria. Mais do que isso, estamos diante de uma das pessoas que vislumbrou o nosso século e o traduziu para nós.
O que talvez seja surpreendente para muitos é ver o quanto Susan Sontag guardava em si características que poderiam hoje ser vistas como misóginas. Sua personalidade forte e sua aparência marcante eram ajustadas pelo fato de que não queria ser vista exatamente como uma mulher (hoje, talvez, seria gender fluid?), pois considerava as mulheres fracas e excessivamente preocupadas com a opinião dos homens.
Só que essa ojeriza ao feminino também revela facetas que hoje se decodificam, possivelmente, como posturas feministas. Sigrid conta que Susan a criticava por usar adereços estereotípicos das mulheres. Ela compartilha que, em certo momento, ouviu da escritora: “Eis a grande diferença entre nós duas. Você usa maquiagem e se veste para chamar a atenção e ajudar as pessoas a te considerarem atraente. Já eu não faço nada para atrair a atenção para a minha aparência. Se alguém desejar, pode se aproximar e talvez descobrir que sou atraente. Mas não farei nada para ajudá-lo”.
Talvez para nós, brasileiros e residentes de nossa época, o mais chocante seja as percepções que Susan Sontag tinha sobre as possibilidades de tomar as rédeas da própria vida. Isso se elucida quando Sigrid nos narra Susan como uma pessoa profundamente estadunidense e, sobretudo, nova-iorquina, e que acreditava que qualquer pessoa que não conseguisse fazer o que realmente quisesse era um fraco ou “servil” (uma das palavras que mais gostava).
Por essas razões, Susan detestava lecionar (pois seria menos tempo e energia dedicado à sua obra) e “aceitar qualquer emprego era humilhante para ela. Também achava humilhante a ideia de pegar um livro emprestado da biblioteca em vez de comprar seu próprio exemplar. Usar transporte público em vez de táxi era profundamente humilhante (…). Ela em geral desprezava as pessoas que não faziam o que queriam verdadeiramente fazer”.
Tudo isso pode soar terrível quando lido em nosso contexto atual, mas talvez seja possível olhar sobre outra ótica: o de vê-la como uma mulher que desafiou todas as convenções do seu gênero para ser quem queria. Mais do que isso, estamos diante de uma das pessoas que vislumbrou o nosso século e o traduziu para nós.
Por fim, em Sempre Susan, temos a sorte de conhecê-la por meio do olhar e da escrita precisa e generosa de uma das escritoras mais talentosas do nosso tempo.
SEMPRE SUSAN: UM OLHAR SOBRE SUSAN SONTAG | Sigrid Nunez
Editora: Instante;
Tradução: Carla Fortino;
Tamanho: 128 págs.;
Lançamento: Agosto, 2023.
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