Há um grito de horror vindo de Tchernóbil, um grito de horror composto por um coro de centenas de vozes estraçalhadas pelo maior desastre nuclear que a humanidade já viu. Em uníssono elas gritam de dor, de desespero, de indignação.
Tudo aquilo que parece indizível ganha forma e entonação quando transformado em narrativa, então nem mesmo a imagem mais chocante consegue superar o impacto de lermos o relato de uma esposa grávida contando com detalhes o período em que o marido permaneceu internado sendo desintegrado pelos efeitos da radiação:
“No hospital, nos últimos dias, eu levantava mão dele e os ossos se moviam, dançavam, se separavam da carne. Saíam pela boca pedacinhos do pulmão, do fígado. Ele se asfixiava com as próprias vísceras. Eu envolvia minha mão com gaze e a enfiava na boca dele para retirar tudo aquilo… É impossível contar isso! É impossível escrever sobre isso! E sobreviver…”.
Os filmes, as reportagens e os documentários feitos ao longo dos últimos 30 anos talvez tenham nos dado uma vaga ideia do que aconteceu no dia 26 de abril de 1986, mas é a partir do trabalho da jornalista ucraniana Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Nobel de Literatura 2015, que temos enfim uma dimensão mais humana do que significa Tchernóbil.
Vozes de Tchernóbil, lançado pela editora Companhia das Letras, com tradução de Sonia Branco, traz relatos de pessoas que sobreviveram à tragédia, mas que ainda carregam consigo feridas que jamais cicatrizarão. A memória está na ferida que marca a pele, no câncer que corrói o organismo, nos olhos das crianças incapazes de brincar, de raciocinar e de sentir algum tipo de felicidade.
É a partir do trabalho da jornalista ucraniana Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Nobel de Literatura 2015, que temos enfim uma dimensão mais humana do que significa Tchernóbil.
Tal como o cineasta Eduardo Coutinho, Svetlana pouco “aparece” e demonstra uma habilidade impressionante de fazer as pessoas se abrirem de modo a escancarar suas fragilidades, seus sonhos, seus pesadelos e, principalmente, suas memórias mais terríveis. Ao colocar no papel e documentar estas narrativas, fazendo até lembrar um livro de contos (talvez um dos livros de contos mais assustadores já escrito, uma vez que está impregnado de uma realidade completamente insana), a jornalista escreve também literatura. Uma literatura cuja relevância vai muito mais além do que um Prêmio Nobel.
Vozes de Tchernóbil já começa de forma chocante, com o relato da mulher de um bombeiro que esteve no reator logo após a explosão, sem nenhum tipo de proteção especial, assim como centenas de outros homens, e dali pra frente a autora não alivia em nada e segue rumo ao inferno apresentando histórias cada vez mais terríveis.
É difícil, por exemplo, permanecer impassível diante de um grupo de crianças que conta suas experiências com detalhes dilacerantes como a rejeição que sofrem na escola, sendo excluídas pelos colegas por serem “contagiosas”, ou sobre como tiveram que abandonar abruptamente as suas casas:
“Nós deixamos o meu hamster trancado em casa. Era branquinho. Deixamos comida para dois dias. E fomos embora para sempre”.
Ou ainda:
“A minha mãe se veste sempre de preto. Com um lenço preto. Na nossa rua, todo dia enterram alguém. Todo mundo chora. Eu escuto a música, corro pra casa e rezo o pai-nosso. Rezo pela mamãe e pelo papai”.
Como os animais também estavam contaminados, eles tiveram que ser dizimados, então caçadores foram contratados para ir até lá e matar gatos e cachorros que vagavam por quintais abandonados, a espera de donos que jamais retornariam, vítimas de uma desgraça incompreensível: “Os animais, se não estavam totalmente mortos, mas apenas feridos, chiavam. Choravam. Estamos passando os animais da caçamba para a fossa e aquele peludinho começa a escalar e sai do buraco. Já não tínhamos mais cartuchos. Não havia nada para matá-lo, nem um cartucho. Empurraram o cãozinho para o buraco e o cobriram de terra. Até hoje tenho pena dele”.
A autora nos lembra também que aquele era um país que ainda se reerguia, pois muitas pessoas que enfrentaram Tchernóbil eram sobreviventes de uma guerra mundial. Então, antes da ameaça radioativa, eles já haviam enfrentando um outro tipo de horror:
“Quando eu era criança, uma vizinha que tinha sido partisan me contou como, na época da guerra, a sua unidade tentava sair do cerco. A mulher levava nos braços um bebê de um mês, caminhava pelo pântano cercado pelos inimigos. A criança chorava, poderia delatá-los, entregar a unidade. E ela o asfixiou. Falava sobre isso de forma alienada, como se não tivesse sido ela, como se outra mulher qualquer tivesse feito isso, como se o bebê não fosse seu […] descobri que para que esses homens sãos e fortes continuassem vivos, tiveram de asfixiar o bebê. Qual é o sentido da vida? Depois disso, não dá vontade viver”.
A radiação tem um potencial devastador gigantesco, mas se trata de uma ameaça invisível e silenciosa num primeiro momento. Esses fatores somadas à ignorância da população e ao jogo de desinformação do governo soviético, serviram para potencializar consequências desastrosas que são praticamente eternas. 24h após o desastre, por exemplo, as pessoas nas cidades próximas, completamente contaminadas, levavam suas vidas como se nada tivesse acontecido. Elas estavam morrendo de forma acelerada e não sabiam. As doenças, as deformações, só cobrariam o seu preço com o passar dos meses. Três décadas depois, vidas continuam a ser destruídas por causa daquela explosão.
O local se tornou inabitável, mas muitas pessoas contrariam a razão, principalmente os mais velhos, inseridos numa dolorosa solidão, se recusam a deixar o local e seguem suas vidas morando num cenário de filme pós-apocalíptico, em que tudo está contaminado, desde a água, os alimentos até as árvores no quintal. Alguns refugiados de guerras pelo mundo ou mesmo da justiça também vão para lá em busca de, veja só que ironia, paz. Svetlana foi para esses lugares e entrevistou essas pessoas, que lhe ofereceram, além de suas histórias, comida e bebida.
Mais chocante do que o acidente em si, foi a reação do governo da União Soviética (prestes a cair) que, alegando desinformação, acabou por elevar a gravidade da tragédia a níveis inimagináveis, uma vez que não evacuou as cidades e ainda enviou o exército para o local na tentativa de enterrar o reator e lacrá-lo. A insanidade era tanta que chegavam a oferecer salários mais altos quanto mais próximo da tragédia o soldado trabalhasse. A indignação diante deste fato transborda em cada relato dos familiares que, em alguns casos, nem mesmo se questionaram se havia algum perigo naquele tipo de ação, pois aquilo representava um ato patriótico. Há diversos casos em que, provavelmente, a pessoa iria se expor à radiação mesmo que soubesse dos riscos, pois aquilo representava um compromisso com o seu país e com o socialismo.
Após ler sobre tanto sofrimento, o leitor pode se fazer a mesma pergunta que um psicólogo entrevistado “para que as pessoas recordam?“, pois será que vale a pena contar e reviver tudo isso? Ao passo que ele mesmo dá a resposta “eu falei com você, pronunciei algumas palavras. E compreendi algumas coisas… Agora não me sinto tão sozinho. Mas e o que acontece com os outros?”. Vozes de Tchernóbil existe para que essas outras vozes por trás desse grito de horror não se sintam mais tão sozinhas, para que elas jamais sejam caladas numa sepultura lacrada. O mundo precisa ouvi-las.
Já li alguns livros bem pesados nessa vida, mas creio poucos deles foram tão devastadores como essa obra-prima de Svetlana Aleksiévitch. Uma leitura tão difícil quanto necessária.
VOZES DE TCHERNÓBIL | Svetlana Aleksiévitch
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Sônia Branco;
Tamanho: 384 págs.;
Lançamento: Abril, 2016.