No belo filme francês Até a Eternidade (2010), um grupo de velhos amigos saem de férias, como fazem todos os anos, mas desta vez, paira sobre a ensolarada alegria deles, a sombra perturbadora de um fato: o grupo não está completo, já que um deles sofreu um acidente grave em Paris e está em coma. Há todo um clima de alegria, já que existe uma doce intimidade entre todos, os lugares que eles visitam são maravilhosos, etc, mas ao mesmo tempo fica sempre aquela sensação esquisita de que o sol insiste em nascer, o dia insiste em ser lindo, mesmo que estejamos despedaçados por dentro. Pensei nesse filme durante todo o tempo em que passei lendo Isso Também Vai Passar, comovente romance escrito pela espanhola Milena Busquets e lançado recentemente pela Companhia das Letras, com tradução de Joana Angélica d’Avila Melo.
Blanca tem 40 anos e acaba de perder a sua mãe. A ausência materna mistura-se à presença de seus próprios filhos, seus dois ex-maridos, seus velhos amigos, um amante casado e um profundo sentimento de inadequação com relação à vida, “sou uma fraude como adulto, todos os meus esforços para sair do pátio do recreio são estrepitosos fracassos”.
O que a personagem sente é mais do que um vazio, é uma angústia que se aproxima do desespero, um deslocamento que a deixa sem chão. Para tentar se fixar no presente e tornar o mundo ao redor um pouco mais suportável, ela utiliza o sexo como rota de fuga e autoengano. Segundo ela, o contrário da morte não é a vida, mas sim o sexo, “a força física dos homens só deveria servir para nos dar prazer, para nos espremer até que não restasse uma só gota de pesar ou medo dentro de nós”, e a partir daí busca em outros corpos uma forma de não morrer como a sua mãe “acho que ninguém pode viver sem determinada dose de amor de contato físico. Abaixo de certo nível, apodrecemos”.
O que a personagem sente é mais do que um vazio, é uma angústia que se aproxima do desespero, um deslocamento que a deixa sem chão.
A viagem para a paradisíaca Cadaqués, no litoral nordeste da Espanha, durante o verão parece uma possibilidade para desopilar, mas o lugar guarda sob sua luz e sua arquitetura inconfundível, um emaranhado de lembranças que acabam por aproximar Blanca ainda mais de sua mãe, uma vez que em vida, apesar de todo o amor, a distância esteve sempre presente, “Nunca fomos mãe e filha confidentes que contavam tudo uma para a outra, nunca fomos amigas, nunca compartilhamos intimidades, acho que cada uma sempre tentou ser a versão mais apresentável de si mesma para a outra”. E ao repisar caminhos da infância, Blanca vislumbra os ecos de um passado talhado no tempo e um presente todo feito de indefinições e incongruências, aparentemente sem traços relevantes que possam ser reconhecidos num futuro próximo.
A frase “O retrato de uma geração”, do Le Monde, na capa do livro me deixou com um pé atrás, pois a gente sabe o quando o pessoal consegue ser superlativo quando se empolga com alguma coisa ou quando precisa mandar ver no marketing, mas tenho que reconhecer: a frase não é exatamente um exagero. Não é um amplo retrato e muito menos o melhor, mas de fato, Isso Também Vai Passar, em menos de 140 páginas, consegue a façanha de nos apresentar um recorte interessantíssimo do destino daquela geração que nasceu no final dos anos 70: “Tornei-me adulta, os hippies envelheceram e os apartamentos se encheram da gente moderna, respeitável e rica dos anos 90. Mas os que tiveram a sorte de vislumbrar pelo buraco da fechadura da infância os últimos estertores do espírito dos anos 70, a liberdade sexual, a liberdade pura e simples, o desejo de se divertir, o poder nas mãos dos jovens, o atrevimento, não saíram imunes. Todos temos paraísos perdidos nos quais nunca estivemos”.
Quando Blanca caminha pelas ruas de Cadaqués, rumo a um encontro que no fundo ela sabe que será bem degradante, surgem alguns ecos da trilogia de filmes dirigida por Richard Linklater (Antes do Amanhecer, Antes do Pôr-do-Sol e Antes da Meia-Noite). O desgaste do relacionamento entre os personagens Jesse e Céline, em especial no último filme, é um tanto amargo porque conhecemos a história de como tudo começou e também por percebemos que a vida, mesmo aquela ingenuamente idealizada, é também composta por palavras dilacerantes, dores e silêncios. E, por mais brutal que pareça, é possível seguir assim, mesmo tropeçando, mesmo que o amor perca o seu brilho ou simplesmente deixe de existir. Blanca trilha um caminho semelhante, pois tudo o que ela tem no momento são destroços de relacionamentos que no fundo nunca acabaram, mas que jamais terão uma continuidade. E tudo bem, ela ainda ama os seus ex-maridos, principalmente por causa da proximidade com os filhos, mas sabe que seria insuportável compartilhar a vida novamente com algum deles.
A própria relação com a prole é marcada pelo afeto e pelo ruído, uma vez que ela ama e protege os filhos feito uma loba, mas ao mesmo tempo não consegue estabelecer um diálogo, já que mal consegue compreender a linguagem deles. O distanciamento da comunicação e das gerações só é sobrepujado pelo contato físico, pelo amor que se explica no intervalo entre o cheiro e a pele.
A obra de Milena Busquets é toda permeada por uma melancolia desconcertante, que ora esbarra em tons mais piegas “Conseguir sexo é relativamente fácil, já conseguir que alguém nos abrace a noite toda é outra história”, ora flerta com um humor mais autodepreciativo que é bem moderado, mas até faz lembrar Woody Allen “- Você estava linda, com uma expressão triste e ensimesmada […] – Chama-se depressão”.
Isso Também Vai Passar é daqueles livros que conseguem te fazer rir, mas ao mesmo tempo te deixa com um nó na garganta. A despeito do título, a história não passa e segue conosco após a leitura.