A Curitiba de Dalton Trevisan não é aquela que o turista viaja. Não é a cidade da Rua das Flores, da Ópera de Arame ou do espetáculo de natal do Palácio Avenida. O que interessa ao Vampiro, que dias atrás completou 94 anos, é a pedra de petit pavê que serve de cama para os merdunchos, os amplificadores apocalípticos da igreja evangélica na Ubaldino do Amaral e os pais violentos que agridem as filhas com facões. Essa Curitiba não está nos cartões-postais, nas lembranças de quem por aqui passou: só circula nas páginas policiais do jornal, nos comentários dos bares da Pedro Ivo e nos barracos do Sabará.
Poucos são os escritores que habitam essa Curitiba além do autor d’A Polaquinha. E são tão poucos, tão raros, que talvez o único com permissão para entrar nesse portão de miséria e realidade seja Márcio Renato dos Santos com os contos de A cor do presente, seu livro mais recente publicado pela Tulipas Negras. Os relatos misturam temas realistas e cotidianos – como vingança, inveja, ciúmes – e viagens oníricas – desejos, ambições, devaneios – em um livro justo cujas palavras parecem ter sido colocadas meticulosamente para não sobrar nenhuma.
“Comfortably numb”, o conto de abertura, é uma ressaca espiritual e social, um passeio pela natureza incompleta de um homem. “Seria”, o texto seguinte, mergulha nas possibilidades, nos condicionais da vida moderna e nos fracassos que qualquer pessoa colecionada ao longo da vida. Márcio Renato constrói, logo de início, uma reflexão imponente sobre as subjetividades e sutilezas, algo que – em certa medida – percorre todo o livro. “O Corpo do sonho” bebe sem timidez em Borges e Cortázar, narrando, ao melhor modo de “A Casa tomada”, o desaparecimento misterioso de mulheres quarentonas.
Em “Eterna”, uma sátira das conferências de escritores como o autor de O Aleph, o curitibano brinca com a noção de hipocrisia, emulando a dissimulação de Almodóvar para criar um retrato cômico do desejo de status e da afetação.
Com uma literatura muito própria, que se insere no particular do autor, A Cor do presente é uma obra cirúrgica, inteligente e cheia de camadas que merece – e deve – ser lida mais de uma vez.
Produção local
Não é segredo que Santos é um entusiasta da produção local, quem sabe o sujeito que melhor compreende a história e a importância do que foi o escritor na terra das araucárias. E esse é o fio condutor de “Subúrbios”, uma homenagem declarada – para não dizer escancarada – à literatura de Curitiba, fazendo de livros e autores pontos-chave de uma geografia sentimental, ao mesmo tempo em que trata de questões como origem, preconceito e ascensão social.
Em todos os contos, A cor do presente – que não esconde o trocadilho entre o que foi e o que é viver e ser invisível na cidade da Lava-jato – faz da literatura um exercício de ressignificação e abstração. É como se Márcio Renato dos Santos afogasse o leitor em um mar de ilusões – às vezes melhores que a realidade e em outras nem tanto – para depois mostrar que aquilo não passou de um escape, uma fuga.
Com uma literatura muito própria, que se insere no particular do autor, A cor do presente é uma obra cirúrgica, inteligente e cheia de camadas que merece – e deve – ser lida mais de uma vez.