Já faz alguns anos desde que os trabalhos do filósofo Byung-Chul Han ficaram conhecidos e foram discutidos, principalmente o ensaio Sociedade do Cansaço, publicado no Brasil pela editora Vozes (tradução de Enio Paulo Giachini). No entanto, devido à pandemia do novo coronavírus, é propício reavaliar as questões postuladas pelo escritor (questões que, como veremos abaixo, ele próprio levantou).
Ainda que tenha nascido na Coreia do Sul, grande parte da vida Byung-Chul Han, principalmente a intelectual, foi formada na Alemanha. Foi lá em que ele desenvolveu a tese de que a mudança do século XX para o XXI trouxe consigo uma importante quebra de paradigma.
Ele elabora essa mudança ao unir o discurso social e biológico, marcando a passagem de um tempo de combate ao estrangeiro e das doenças bacteriológicas e virais ao momento de inimigos internos e doenças mentais, surgidas do excesso de “positividade” e “produtividade”.
Por exemplo, as metáforas bélicas tão utilizadas para explicar processos do corpo, como o funcionamento dos anticorpos – que combatem, lutam, eliminam os corpos estranhos ou de fora, se tornam defasadas ao tentar explicar doenças como depressão e burnout.
Dessa forma, a sociedade da Disciplina e seus mecanismos de punição pelo desvio, como as Escolas, as Cadeias e os Manicômios, já descritos por Foucault, se torna uma sociedade do Dever, onde o que impera é a necessidade de ação produtiva, de empreendedorismo, como no slogans “Yes, we can”, de Barack Obama, “Just do It”, da Nike.
Como descrito na resenha “A sociedade do cansaço”, da IHU Unisinos, “a positividade de ‘poder’ é mais eficiente do que a negatividade do ‘dever’. Desse modo, o inconsciente social passou do dever ao poder, mas sem anular um ao outro, isto é, como uma continuidade: o sujeito do desempenho continua sendo disciplinado”.
Para Byung-Chul Han, ao mudar o foco da pressão, tirando ela dos fatores externos para os internos, aumenta-se o cansaço mental, a falta de sono, as doenças mentais. Assim, com o esforço de ter que ser “você mesmo”, buscar sua autenticidade e produtividade em um processo de autoexploração, vivenciamos uma violência neuronal, dentro do sistema. Trocamos os “loucos e delinquentes” por “deprimidos e fracassados”.
Dentro desse contexto, Byung-Chul Han apresenta problemáticas como a existência da necessidade da capacidade multitarefa (uma característica dos tempos selvagens, como quando animais precisavam dormir e ficar atentos aos predadores), e a substituição do ócio contemplativo pelo tédio.
No entanto, durante a leitura do ensaio, algumas problemáticas aparecem. O que parece mais problemático é a forte manutenção do modelo binário de controle em determinados setores da sociedade que parece fugir ao autor. É claro que, como o teatro não substituiu o cinema, um modelo não apaga o outro, mas eles passam a coexistir.
Simplificando, como disse Marianna Assunção Figueiredo Holanda em um resenha acadêmica na Revista Brasileira de Bioética, é complicado assumir esse modelo como o vigente no globo. “Apontar a sociedade pós-moderna como neuronal e hiperativa é um diagnóstico teórico relevante, contudo, ela ainda permanece, sobretudo do lado de cá do planeta, colonial, racista, sexista, especista”, escreveu Marianna.
Pandemia em 2020
Retomando à questão do texto, em seu livro Byung-Chul Han escreve que “toda época tem as suas enfermidades emblemáticas. Assim, existe uma época bacterial, que, no entanto, chega ao fim com a descoberta dos antibióticos. Apesar do medo manifesto da pandemia gripal, atualmente não vivemos uma época viral. Deixamo-la para trás graças à técnica imunológica. O começo do século XXI, de um ponto de vista patológico, não seria nem bacterial nem viral, mas neuronal”.
Recentemente, o filósofo reviu seu pensamento no texto “o coronavírus de hoje e o mundo de amanhã”, publicado no jornal El País. Antes de me ater aos pontos do texto, uma coisa que me parece latente é o que Bauman chamou de fim da utopia europeia – já discutido em um texto. Segundo o filósofo falecido, a União Europeia trouxe um projeto utópico de união que, aos poucos, estagnou e apresentou a morte de uma utopia próxima. Sem novas proposições, Bauman via esse definhamento como mais um tijolo de desesperança no muro das angústias do século.
Para Byung-Chul Han, ao mudar o foco da pressão, tirando ela dos fatores externos para os internos, aumenta-se o cansaço mental, a falta de sono, as doenças mentais.
Talvez, esse seja um grande momento para se observar as fraquezas da UE… e é aqui que entra a revisão de Byung-Chul Han. Em seu último texto, publicado no dia 22 de março, ele comenta sobre como a Europa tem tomado medidas bélicas que remontam à lógica do período da Guerra Fria, fechando fronteiras e isolando agentes. Em contraposição, ele apresenta como as novas biopolíticas e psicopolíticas digitais dos modelos asiáticos têm tido mais sucesso ao tratar da epidemia, ainda que a circulação e o contato esteja liberado (uma sobreposição dos modelos discutidos no ensaio apresentado, mostrando como a presença de um não exclui o outro).
Como ele descreve minuciosamente no texto (cuja leitura é, mais uma vez, recomendada), por trás desse modelo “permissivo” há um forte senso de comunidade, uma ausência total de privacidade e a estruturação de um gigantesco sistema de vigilância e controle, tolerados devido à valores opostos aos que o Ocidente cultiva – uma diferença que não é pautada em graus hierárquicos, elegendo sistemas “melhores” ou “piores”.
O tom que ele traz ao seu texto digital, no entanto, apresenta uma postura mais ativa do que a breve descrição da “vita activa” que ele traz ao ensaio. Ao mostrar as possibilidades de que, enquanto modelo de sucesso, a China possa vender o seu Estado policial digital e o estado de exceção e vigilância constante se torne normal (e até desejável).
Talvez a grande problemática a ser resolvida entre os textos seja o mesmo de adotar uma postura transformadora, longe do tédio. Transformar o momento de tédio daqueles em isolamento social em possibilidades de um ócio criativo. Caso contrário, em pouco tempo o sistema financeiro retornará com ainda mais pujança, continuando o seu rastro de destruição do clima e das pessoas.
Como um apelo, o filósofo escreve no fim: “não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta”.
SOCIEDADE DO CANSAÇO | Byung-Chul Han
Editora: Vozes;
Tradução: Enio Paulo Giachini;
Tamanho: 136 págs.;
Lançamento: Dezembro, 2014.