Em O Estranho que Nós Amamos, longa mais recente de Sofia Coppola, a morte vem como um alívio para os tormentos. Para Bentinho, o choro de Capitu no enterro de Escobar é a primeira prova do adultério. N’O Processo, Kafka faz do suspiro final de Joseph K. uma mistura de expurgo e resignação. Em Coração e Alma (Rádio Londres, 2017), primeiro romance da escritora francesa Maylis Kerangal publicado no Brasil, a morte é também a salvação.
Quando Simon, um surfista de vinte e poucos anos, é levado às pressas para a UTI após um grave acidente de carro, seus pais – Sean e Marianne – sabem que ele não vai voltar. Como em Acossado, de Godard, Maylis constrói o fim por um herói que tem seu destino já escrito. No caso de livro, o coração de Simon deverá bater no peito Claire, uma mulher de meia-idade.
Com uma habilidade monstruosa, a autora – que é considerada um dos nomes mais importantes da literatura contemporânea na França – faz uma verdadeira jornada heroica e simbólica de 24 horas. Seu texto é pungente sem que precise cair no tom piegas e melodramático, ao contrário, a narrativa se edifica pelo caráter humano e sensível, capaz de arrebatar o leitor pelas reflexões que propõe.
Os personagens, um a um, surgem no romance como pingos de chuva em um dia de sol e, repentinamente, inundam o cenário e também quem lê.
Coração e Alma atravessa a França, mas percorre também as “etapas” para que o coração chegue à Claire. Do acidente, ao hospital, às vidas dos médicos, de pessoas comuns e, claro, de Claire – que é a maior interessada em tudo isso. Os personagens, um a um, surgem no romance como pingos de chuva em um dia de sol e, repentinamente, inundam o cenário e também quem lê.
Kerangal consegue fazer do livro uma narrativa leve e sublime sobre o sagrado da vida deixando de lado qualquer caráter religioso ou panfletário. Ao mesmo tempo, Coração e Alma é um debate sobre os conflitos geracionais entre pais e filhos – filhos que “ficam trancados no banheiro e exigem, fora de si, que parem de bater na porta”. São extremos que se cruzam e se completam como um retrato fiel do que é existência humana – apenas um jogo.
Ferro e concreto
A reviravolta de todo o romance começa com a singela e significativa frase “ele é doador”, dita por Sean. A partir desse momento, Simon irá deixar seu corpo para se instalar em Claire, para bater e continuar batendo neste mundo. Nesse sentido, o livro caminha como se tivesse suas próprias pernas, buscando sempre o acalento impossível.
Muito mais que o relato de um transplante de coração, Coração e Alma é um manifesto de sobrevivência da alma explorando a cidade e seu labirinto repleto de não-lugares, sempre prontos a apartar homens e mulheres na vastidão de vazio preenchido por ferro e concreto.
CORAÇÃO E ALMA | Maylis de Kerangal
Editora: Rádio Londres;
Tradução: Maria de Fatima Oliva do Coutto;
Tamanho:240 págs.;
Lançamento: Julho, 2017.