Não sei exatamente o que leva uma pessoa normal a começar a ler o primeiro livro de uma série com mais de 8 sequências lançadas e sem previsão de terminar (os fãs dos livros de Game of Thrones talvez saibam um pouco), só sei que fiz a cagada de começar as Crônicas Saxônicas de Bernard Cornwell e agora quero ler tudo o que esse cara lançar.
Cornwell é o tipo de escritor que compõe a sua obra de maneira tão envolvente que transforma os seus leitores em escravos voluntários. É bem difícil que uma pessoa que se interesse minimamente por literatura medieval e afins não se sinta absolutamente presa pela narrativa do autor.
O Último Reino, lançado pela editora Record, com tradução de Alves Calado, é o primeiro volume das Crônicas Saxônicas, no qual somos apresentado ao jovem Uhtred, cujo pai que tem o mesmo nome (esses escritores adoram essas confusões, né? “João, filho de João e neto de João que veio das terras de João o Sul”) tenta liderar a resistência das ilhas britânicas à invasão dos dinamarqueses (que eram os Vikings, só que sem aqueles capacetes com chifres bem legais, infelizmente).
Mesmo sendo um livro de entretenimento, que claramente não almeja voos mais sérios do que ficcionalizar momentos históricos, O Último Reino insere na sua narrativa uma interessante discussão sobre religião.
Trata-se de um romance de formação, uma história sobre amadurecimento e vingança, cheia de aventuras e reviravoltas: o que talvez explique o porquê de ser tão viciante. A grande sacada deste início e o que o torna fascinante é que já no começo Uhtred acaba sendo sequestrado pelo líder dos dinamarqueses, Ragnar, que o cria como se fosse um filho. O jovem passa então a conhecer o inimigo de modo tão profundo que ele talvez até deixe de ser um inimigo.
Mesmo sendo um livro de entretenimento, que claramente não almeja voos mais sérios do que ficcionalizar momentos históricos, O Último Reino insere na sua narrativa uma interessante discussão sobre religião, pois Uhtred acaba deixando os valores cristãos que aprendeu com os britânicos e passa a vivenciar o paganismo dos dinamarqueses, muito mais interessante e divertido, em sua opinião, já que não possui todo aquele sentimento de culpa tão presente no catolicismo.
As diferenças culturais e religiosas entre os dois povos tomam boa parte de narrativa e servem como momentos de respiro e de humor entre uma batalha e outra, ao mesmo tempo em que acabam por ajudar no desenvolvimento dos personagens. Cornwell nos dá informações suficientes sobres os personagens (mais ou menos como J. R. R. Tolkien faz em A Sociedade do Anel), de modo que o leitor se importe minimamente quando uma lança atravessar a garganta de algum coitado.
Toda a questão da estrutura ambiciosa, com inúmero personagens, fatos históricos, etc são sensacionais, mas o que torna a literatura de Bernard Cornwell algo muito acima da literatura de gênero convencional é a habilidade do autor em narrar batalhas sangrentas, tanto as estratégias bem detalhadas, quanto a ação em si. E quando digo sangrentas, quero dizer, sangrentas pra caralho, tipo isso:
“Não foi um golpe limpo e eu não tinha força para mandá-lo para trás, mas a ponta da lança furou sua barriga e então o peso dele me puxou para trás enquanto ele meio rosnava e meio ofegava. Caí e ele caiu em cima de mim, forçando de lado porque a lança estava em suas entranhas, e tentou agarrar minha garganta, mas eu me retorci saindo de baixo dele, peguei sua lança de enguia e cravei em sua garganta. Formaram-se riachos de sangue na terra, gotas espirravam no ar, ele estava se sacudindo e engasgando, sangue borbulhando na garganta rasgada, e tentei puxar a lança de enguia de volta, mas as farpas nas pontas ficaram presas em sua goela, por isso arranquei a lança de guerra de sua barriga, tentei fazê-lo parar de se sacudir cravando-a fundo no peito, mas só raspei nas costelas”.
Ou isso:
“Não creio que ele tenha sofrido muito. Já estava tão débil que até meus golpes ridículos o mandaram rapidamente para a inconsciência, mas mesmo assim demorei muito para matá-lo. Tive de retalhá-lo. Sempre me surpreendi com o esforço necessário para matar um homem. Os skalds fazem parecer fácil, mas raramente é. Somos criaturas teimosas, grudamo-nos à vida e somos muito difíceis de matar, mas a alma de Weland finalmente foi para o destino enquanto eu o picava, serrava, golpeava e por fim consegui cortar sua cabeça sangrenta. A boca estava torcida num ricto de agonia, e isso serviu um pouco de consolo”.
Deu pra sentir o naipe do negócio? É assim o livro todo.
Há muito tempo ouço falar de Bernard Cornwell, que faz muito sucesso por aqui, principalmente por sua trilogia sobre a lenda de Rei Artur, e lamento profundamente por não ter começado a lê-lo antes. A boa notícia é que livro não vai faltar para mergulhar no universo do autor.
O ÚLTIMO REINO | Bernard Cornwell
Editora: Record;
Tradução: Alves Calado;
Tamanho: 360 págs.;
Lançamento: Agosto, 2014.