A literatura de Gonçalo M. Tavares é sempre avassaladora: não existe texto que passe incólume às suas experimentações e aos seus desvios e inversões gênero. Categorizar seus livros é uma tarefa desnecessária, são literatura e ponto. O Torcicologologista, excelência, seu livro mais recente no Brasil, é um belo e complexo arremate de sua vasta produção até o momento.
A ironia – que já transparece no título – é levada às últimas consequências na história de um país/lugar no qual a população sofre uma epidemia de torcicolos e é preciso chamar um especialista no assunto para resolver a questão. O torcicolo pode muito bem ser uma metáfora para as atribulações cotidianas e as incongruências de uma sociedade cada vez mais apartada de seu caráter humano.
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Para colocar fim às mazelas, Gonçalo coloca as excelências para debater – ou seria confabular? – a respeito do futuro do povo, que busca uma maneira (co)ordenada de chegar à revolução. O Torcicologologista, excelência não é um livro sobre ideologias, mas sobre as pequenas frustrações e comoções que nos lembram quem realmente somos. Os personagens – que não têm nomes e sim números – da primeira parte representam a massa amorfa que compõe o mundo real. Nem tudo em Tavares é ficção, muitas vezes é a realidade travestida de invenção.
Os livros de Gonçalo M. Tavares são um exercício de observação e vivência – como a se arte fosse construída sobre os escombros deixados pela vida.
Na brevíssima segunda parte, o autor cria uma espécie de dicionário de excentricidades e excêntricos. Como lhe é de praxe, Gonçalo é perito em desconstruir a linguagem, subvertendo forma e conteúdo para criar o novo – sem que seja preciso desvencilhar-se daquilo que é tradição. Como em Animalescos e Short Movies, O Torcicologologista, excelência é um livro de período curtos e precisos, dando a ideia de que cada frase é esculpida e construída minuciosamente para estar ali.
Verbo e carne
Gonçalo M. Tavares é um escritor peculiar. Herdeiro de Kafka e Saramago, o autor de Jerusalém não está ligado sentimentalmente a nenhum movimento. De 1990 a 2000, esteve preocupado apenas em escrever, até que, em 2001, publicou seu livro de estreia: O livro da dança. A explicação para tamanho desprendimento está naquilo que acredita ser a função do escritor: apenas escrever. “Escrever e publicar são verbos diferentes”, costuma dizer.
Nesse sentido, a sua literatura é sempre uma obra em gestação. Escreve, reserva por dois anos, revisa e, talvez, venha a publicar. Ao mesmo tempo, isso faz dos escritos de Gonçalo um trabalho atemporal e poderoso. Textos como A Máquina de Joseph Walser, Uma menina está perdida no seu século à procura do pai ou Matteo perdeu o emprego são exercício de observação e vivência – como se arte fosse construída sobre os escombros deixados pela vida.
O TORCICOLOGOLOGISTA, EXCELÊNCIA | Gonçalo M. Tavares
Editora: Dublinense;
Quanto: R$ 30,92 (256 págs);
Lançamento: Abril, 2017.