Em “A Morte e a Bússola”, Jorge Luis Borges brinca com as convenções do gênero policial e apresenta um conto em que detetive e assassino podem ser vistos como possibilidades de leitura de um texto: enquanto o investigador “lia/investigava” de maneira mais rígida, em busca de compreender as narrativas do crime, o criminoso foi um leitor que se permitiu uma leitura mais fluída – fato que selou a perspicácia deste sobre o outro.
Outras narrativas policiais colocam a investigação/leitura de maneira mais direta, brincando com o próprio formato do livro. Em S., por exemplo, J.J. Abrams e Doug Dorst copiam a conversa de duas pessoas por meio de anotações em um livro que dividem em uma biblioteca, com segredos que só estão acessíveis para os leitores que investigarem.
No meio do caminho entre essas duas possibilidades está House of Leaves (ou Casa de Folhas, em uma tradução aproximada). Esse é o livro de estreia de Mark Z. Danielewski, com a segunda edição lançada em 2000 pela Random House – a “primeira edição” foi um compilado de arquivos que Mark reuniu em um website próprio e passou para alguns amigos checarem o romance que ele estava escrevendo.
Antes de continuar, é preciso entender não é fácil explicar o que é House of Leaves. Em primeiro lugar, o livro é estruturado como uma boneca russa: são narrativas que habitam o interior da outra. São ecos de diversas vozes, reais ou fictícias, que formam uma narrativa imbricada – Borges, por exemplo, é uma das várias vozes ecoadas por ali.
Em primeiro lugar, o livro é estruturado como uma boneca russa: são narrativas que habitam o interior da outra. São ecos de diversas vozes, reais ou fictícias, que formam uma narrativa imbricada.
O livro gira ao redor de um documentário gravado por Will Navidson, um fotógrafo de guerra vencedor de um prêmio Pulitzer. Essa filmagem, conhecida como The Navidson Record, diz respeito aos fenômenos esquisitos que ocorrem em uma casa recém-habitada por Navidson e sua família…. e tudo começa quando uma porta aparece, da noite para o dia, e revela corredores infinitos rumo a uma imensidão escura e fisicamente impossível.
Zampanò, um idoso cego como Borges, faz um cansativo estudo sobre o documentário, com citações de diversos pesquisadores que se debruçaram na análise das filmagens, e dialoga também com outros autores conhecidos por nós, como Derrida, Sontag e Freud. Quase da mesma forma que Pierre Menard recria Dom Quixote no conto de Borges, Zampanò apresenta para os leitores o documentário (que nunca viu) e as subsequentes interpretações que dele surgiram.
Tal estudo, chamado House of Leaves, é encontrado na casa de Zampanò por Johnny Truant após a sua morte. Conforme Truant lê o livro, terror e perturbação passam a ser cotidianos em sua vida. Conforme faz a leitura, Johnny organiza as folhas, seus anexos e faz diversas observações em notas de rodapé – como o fato de não ter encontrado nenhuma cópia do filme nem metade das referências citadas. Soma-se a isso sua intromissão frequente na narrativa, com relatos de casos absurdos e a história de sua família.
O livro que temos em mão é, então, essa última versão marcada por Johnny. A narrativa vai, aos poucos, assumindo ares cada vez mais sinistros. Quase como Bruxas de Blair, Navidson preenche a casa com câmeras e faz incursões para dentro daquele espaço sinistro – um território impossível de ser captado: não há janelas; os corredores têm distâncias incalculáveis, já que a luz não encontra nenhum objeto para ser refletida e o som não ecoa. Tudo que existe ali é a escuridão e o frio crescentes, além de um persistente rosnado sombrio.
Nessa investigação sobre as minúcias da casa, os recursos visuais são parte importante. A diagramação do livro evoca os espaços da casa, como a emulação de uma parede com janelas ou a tentativa de fazer com que o trajeto da leitura seja o mesmo que o dos personagens na casa, vide imagens abaixo. O uso das cores também é outro recurso: a palavra “casa”, em diversos idiomas, sempre aparece pintada de azul; já as reflexões de Zampanò sobre labirintos e o Minotauro aparecem em vermelho, quase sempre riscadas pelo próprio autor.
Além disso, muitos mistérios surgem a partir do texto. É fácil encontrar questionamentos e discussões de fãs pela internet – uma pesquisa bastante interessante, já que, lançado nos anos 2000, muitas respostas estão em sites antigos, fóruns esquecidos ou até mesmo com links fora do ar; por outro lado, novas discussões surgem em plataformas mais recentes, como na rede Reddit. Essa busca é quase um processo arqueológico.
No entanto, as coisas vão se mostrando ser um pouco mais do que parece. Aos poucos, a casa se parece como uma espécie de centro catalisador, fato que nos rememora ao ponto de “O Aleph”, outro conto de Jorge Luis Borges, e como o próprio escritor argentino entendia a estruturação do mundo através da linguagem. Isso porque também nos pegamos pensando que há ali também uma questão metalinguística, uma reflexão sobre a própria linguagem – algo que relaciono com a sensação que senti ao ver a cena da apresentação teatral de Mulholland Drive, filme de David Lynch, quando vemos que “no hay banda”.
Ainda que a quantidade de mistérios possa cansar parte dos leitores, ou que alguns recursos pareçam usados até o esgotamento, em House of Leaves, Danielewski (ou seria Zampanò?) não apenas traz um livro de terror e mistério bastante interessante, mas apresenta as possibilidades que a virada do milênio trouxe para uma nova possibilidade de fazer literatura.
HOUSE OF LIVES | Mark Z. Danielewski
Editora: Random House;
Tamanho: 736 págs.;
Lançamento: Março, 2000.