O filósofo alemão Theodor Adorno explicou, ainda na década de 1940, que tempo livre é todo o instante no qual o empregado não está em contato com o trabalho. Nesse sentido, a recusa aos afazeres obrigatórios é também uma busca pela liberdade e pela emancipação. Quando Herman Melville escreveu Bartleby, o escrivão, que acaba de ser relançado pela José Olympio, o autor do monumental Moby Dick não imaginava criar um estereótipo tão perfeito para o sujeito pós-moderno, alheio ao mundo e também a si próprio.
Bartleby é um jovem escrivão que aparece em um escritório de advocacia em Wall Street após atender a um anúncio de jornal. Muito quieto e resoluto, o rapaz logo se resigna das tarefas que lhe cabe, exteriorizando a sua afasia com o famoso bordão: “prefiro não fazer”. A situação gera incômodo entre seus companheiros de trabalho, os não menos bizarros, porém produtivos, Turkey, Nippers e Ginger Nut (Peru, Alicate e Pão de Mel, como comenta Modesto Carone no posfácio da edição publicada pela Cosac Naify em 2005).
O dono do escritório, um homem idoso que permanece anônimo durante toda a história, é confrontado cena a cena pela recusa e pela reclusão de seu funcionário, até descobrir que, na realidade, Bartleby está morando ali. Melville é sagaz em traçar, com linhas muito tênues, um personagem com tantos “encantos” psicológicos, como em uma ode à procrastinação, no caso, um adiamento ad infinitum. Como Carone comenta, até mesmo o escritório é arquitetonicamente perfeito para que o escrivão possa manter-se isolado. Dentro desse caos, tudo parece estar, literalmente, na mais perfeita harmonia.
Kafka
Jorge Luis Borges – no prefácio que acompanha a recente edição e que pode ser encontrado em Prólogos, com um prólogo de prólogos – nota que Bartleby é, na realidade, um personagem kafkiano – vivendo em um universo muito interior e expressionista. A criação de Melville tem a mesma pulsão negativa que K., Gregor Samsa ou Josef K. Assim como as criaturas do tcheco, Bartleby é um artista da fome, alimentando-se apenas de bolinhos de gengibre e nada mais. Borges tem uma explicação muito sábia a esse respeito: tanto Bartleby quanto os escritos de Kafka estão centrados nas “fantasias do comportamento e do sentimento”.
Até mesmo o escritório é arquitetonicamente perfeito para que o escrivão possa manter-se isolado. Dentro desse caos, tudo parece estar, literalmente, na mais perfeita harmonia.
É, no entanto, impressionante que o escritor norte-americano tenha conseguido transpor certa leveza e comicidade em sua novela. O caráter irônico vai ser o estopim para que o catalão Enrique Vila-Matas buscasse outros bartlebys na história da literatura. Em seu Bartleby e companhia, ele mapeia outros casos – reais ou não – de outros “seres em que habita uma profunda negação do mundo”. De Rimbaud, passando por Baudelaire e chegando a Melville, Vila-Matas apresenta ao seu leitor a estranheza de pessoas “normais”.
Bartleby, o escrivão é um texto que se mantém atual, uma bela e intrincada crítica à burocracia que leva à morte ou à prisão. Melville brinca justamente com essa noção de fim ao relatar que seu personagem acaba em Tombs, um jogo linguístico pode significar uma cadeia específica e, claro, os túmulos. Talvez a reencarnação mais contemporânea de Bartleby não esteja na literatura, mas no cinema, em Eu, Daniel Blake, uma fábula recheada de humor negro sobre os labirintos das repartições públicas e da ignorância do ser humano.
BARTLEBY, O ESCRIVÃO | Herman Melville
Editora: José Olympio;
Tradução: A. B. Pinheiro de Lemos;
Tamanho: 96 págs.;
Lançamento: Março, 2017.