A literatura pós-moderna parecer sobreviver de uma tensão muito particular: da necessidade constante de retratar seu próprio tempo como metáfora e realidade. L’Anomalie, romance de Hervé Le Tellier publicado ano passado – no auge francês da pandemia de covid-19 – e que se tornou coqueluche no país, mantém essa tradição silenciosa.
A partir de um voo Paris-Nova York que se repete de forma inesperada em curto espaço de tempo, com os mesmos passageiros e a mesma tripulação, o autor escrutina a noção de realidade e as interpretações possíveis para o que tendemos como real.
Segundo James Wood, talvez o mais importante crítico literário vivo, existe uma arqueologia literária que atravessa certos escritores, entre eles Paul Auster e Don DeLillo, que parece refletir uma espécie de ética autocentrada, uma composição sempre cíclica. Em alguma medida, esse sempre foi o problema dos textos mais questionáveis de Philip Roth – como O Professor de Desejo e O Seio – e da qual só conseguiu se libertar no final da vida.
Le Tellier esbarra nesses mesmos obstáculos ao tentar examinar o mundo pós-coronavírus. Essa estratégia, a de investigar algo em curso, é sempre uma armadilha que atrai grandes escritores. Cristovão Tezza foi vítima desse mesmo mal com A Tirania do Amor, romance bastante irregular sobre a queda de Dilma Rousseff e o esquálido governo de Michel Temer.
L’Anomalie é, na verdade, uma grande alegoria sobre o abismo e o fim do individualismo, sobre a construção de personas sociais e a necessidade de relações.
L’Anomalie é, na verdade, uma grande alegoria sobre o abismo e o fim do individualismo, sobre a construção de personas sociais e a necessidade de relações. Para construir a narrativa, o escritor lança mão de um artifício comum: a ideia do duplo. É o legado de Dostoievski mais vivo do que nunca.
O romance, que parte da construção básica de um thriller psicológico, se transforma em uma interpretação do mundo a partir do caos e da paranoia norte-americana para o terrorismo biológico. Num momento de distanciamento e incerteza, Le Tellier elabora aquilo que pode ser pior que o fim da vida: a continuidade através de um doppelgänger.
Como Nós, o longa de Jordan Peele, ou O Homem Duplicado, de Saramago, L’Anomalie explora o olhar político e social sobre essa desterritorialização do indivíduo. Essa multiplicação do sujeito é também sua redução, o esgotamento de sua natureza única. O coletivo – a ideia de coletividade – é sempre defendida pelos regimes totalitários como forma de restringir direitos e maximizar deveres.
A natureza absurda do romance é interessante, mas não é original e chega a ser um pouco confusa diante dos personagens – passageiros de “um avião que voa duas vezes” – que se amontoam na narrativa. E quem sabe o mais importante de todos esses filhos de Le Tellier seja, justamente, Victor Miesel, romancista duplicado que irá escrever um livro homônimo ao de Le Tellier.
O experimentalismo, por sinal, não vem do acaso. L’Anomalie espelha o legado de Georges Perec e os mandamentos do OuLiPo – grupo vanguardista que explorava os limites da literatura por meio de investigações e diálogos com a sociologia, a matemática, etc. Esse jogo borgeano percorre todo o texto, mas nem sempre parece se completar tão bem como manda a cartilha pós-moderna. Há sempre uma sensação de que uma peça está faltando – e aqui não falamos da mesma incompletude proposital de Perec em O Sumiço – e sim de algo que deixa a obra em aberto.
L’ANOMALIE | Hervé Le Tellier
Editora: Gallimard;
Tamanho: 336 págs.;
Lançamento: Agosto, 2020.