Ao analisar a obra de Neil Gaiman, em artigo anterior para a Escotilha, escrevi: “Se há um autor que tenha atingido o status de astro do rock dentro de seu gênero, com todas as facetas que tal fama representa, esse autor é Neil Gaiman.” De fato, Gaiman ainda é – e deve continuar sendo – um dos grandes rockstars da ficção especulativa. Responsável por clássicos da fantasia contemporânea como Deuses Americanos e O Oceano no Fim do Caminho, o autor conquistou uma verdadeira legião de fãs, equilibrando humor, delicadeza e sagacidade em suas análises bastante particulares dos mitos e histórias que nos tornam humanos.
Todas as técnicas e temáticas que viriam a marcar sua obra já se mostravam presentes nas primeiras edições de Sandman, uma das mais influentes HQs de todos os tempos, publicadas em 1989. Descrita por Norman Mailer como “história em quadrinhos para intelectuais”, a série foi responsável por reinventar as estruturas e subverter os clichês narrativos das HQs, redefinindo os limites do que essa forma de arte seria capaz. Este trabalho tem início com as inesquecíveis personagens da obra: em Sandman, Gaiman nos apresenta algumas de suas mais memoráveis criações, em especial o protagonista Sonho (também chamado de Morpheus) e os demais Perpétuos, encarnações antropomórficas de aspectos primordiais do universo, como Morte, Delírio e Desejo.
Inicialmente centrada na busca de Sonho por seus poderes perdidos, a saga se desenvolve em um épico que aborda as mais variadas nuances das relações humanas e de seus mais primordiais anseios e temores. Em nenhum outro lugar essa criatividade está em maior evidência do que na quarta edição da HQ, Uma Esperança no Inferno.
O foco da história, que funciona como um conto inserido na narrativa principal (com começo, meio e fim bem definidos), é a descida de Morpheus ao Inferno, motivada pela necessidade de encontrar seu elmo perdido, um de seus artefatos essenciais, esculpido em “ossos de um deus morto”. Durante a primeira parte de sua jornada, o protagonista narra sua passagem por paisagens verdadeiramente dantescas, cenas de horror e agonia infindável. Aqui, vale ressaltar a importância da arte dos ilustradores Sam Kieth e Mike Dringerberg, que desempenham um papel crucial ao realçar a força do roteiro e as descrições poderosas fornecidas pelo narrador.
A série foi responsável por reinventar as estruturas e subverter os clichês narrativos das HQs.
Após seu encontro com os três senhores do Inferno – Lúcifer, Beelzebub e Azazel –, Morpheus encontra o demônio em posse de sua ferramenta e, em uma das mais memoráveis passagens de toda a literatura em quadrinhos, enfrenta a criatura em um duelo único e surpreendentemente poético. Brilhantemente, Gaiman opta por evitar a violência como forma de resolução desse conflito, recurso narrativo recorrente em um meio dominado por super-heróis poderosos, acostumados a utilizar da força física para superar as adversidades da trama.
Ao invés disso, parece buscar referência em Tolkien; mais especificamente, no embate entre Bilbo e Gollum em O Hobbit, travado inteiramente por meio de charadas. Como em Tolkien, é a astúcia de Morpheus que define sua vitória, e não músculos ou superpoderes. Desafiado pelo demônio a competir em uma espécie de jogo de metáforas, em que cada jogador deve contra-atacar a imagem fornecida pelo adversário, Sonho emerge triunfante ao apostar na maior de todas as forças: em pleno Inferno, evoca a esperança.
Trata-se de um conflito emocionante que em nada depende dos artifícios batidos das HQs da época e que consegue subverter as expectativas do leitor a cada página, resultando em uma das melhores edições de uma grande obra que merece ser lida e relida devido à sua influência indiscutível no mundo dos quadrinhos. Sem dúvida, um clássico.
SANDMAN Vol. 1 | Neil Gaiman
Editora: Panini;
Tradução: Jotapê Martins e Fabiano Denardin;
Tamanho: 232 págs.;
Lançamento: Maio, 2019.