Se aqui não temos um Playmonth Fury vermelho com vida própria que sai por aí matando pessoas, pelo menos temos um Mercedes-Benz dirigido por um jovem psicopata que resolve atropelar uma multidão numa feira de empregos (a história se passa durante a mais recente crise financeira dos EUA). O assassino escapa ileso e, meses depois, a missão de capturá-lo caberá a uma improvável dupla formada por um policial aposentado e um jovem nerd.
Literatura policial pode até não ser a especialidade do mestre do suspense, mas não há como negar que Stephen King, com tantas obras nas costas, realmente tem as manhas de contar histórias divertidas que deixam os leitores colados nos livros. Talvez ele não saiba muito bem como terminá-las, é verdade, mas depois a gente fala disso.
As investigações do detetive Bill Hodges na época do crime fracassaram e após a aposentadoria, num clima um tanto decadente, restou-lhe o sofá e a programação degradante da TV. Sua depressão só é interrompida quando ele recebe uma carta que mudará tudo. Brady Hartsfield, o Mr. Mercedes, está meio entediado após tanto tempo e então resolve iniciar um jogo psicológico com o velho policial para tentar levá-lo ao suicídio.
Alguns elementos básicos do gênero tão popularizado por Agatha Christie estão presentes: investigação da cena do crime, as pistas e as deduções. Todas as ações, mesmos as coincidências mais estapafúrdias, vão sendo levadas de modo muito convincente e nos fazem crer que, sim, aquilo poderia muito bem ter acontecido. O autor conduz com facilidade o núcleo dos mocinhos e mesmo que o seu gorducho Bill Hodges não chegue aos pés de um Harry Hole (leia a crítica aqui), ainda assim é um personagem interessante. Seu parceiro, Jerome, apesar de estar atolado no clichê do “jovem que entende de computadores” e aparecer pouco, ainda assim consegue ser um contraponto divertido.
Mr. Mercedes, que é a primeira parte de uma trilogia, nos dá os pontos de vista do assassino e do policial, então não há muitas revelações a serem feitas.
Parte das falhas de Mr. Mercedes, lançado pela Suma de Letras com tradução de Regiane Winarski, diz respeito ao antagonista. Hartsfield é um vilão muito meia boca. Só de pensar que ele nasceu da mesma mente que teve a capacidade de criar Pennywise, chega a dar um desânimo. O jovem problemático foi criado numa família um tanto disfuncional e a sua atração sexual pela própria mãe alcoólatra não colabora muito para um clima de normalidade. O único ponto realmente legal é o seu emprego improvável: motorista do carro de sorvete.
Mr. Mercedes, que é a primeira parte de uma trilogia, nos dá os pontos de vista do assassino e do policial, então não há muitas revelações a serem feitas, é mais uma questão de acompanhar se as deduções vão se encaixar naquilo que já sabemos. É interessante acompanhar o psicopata planejando seus próximos passos (e suas burradas), já a investigação acaba se arrastando em elementos forçados ou apenas desinteressantes, como a questão da chave do carro.
Apensar de tudo, Stephen King manda muito bem no desenvolvimento da maioria dos personagens, já que ele consegue dar uma profundidade que não é muito comum nesse tipo de literatura e ainda dá um jeito de encaixar um plot twist ali no meio que torna a história mais viciante em seu terço final. Dali em diante, é realmente difícil largar a leitura.
A obra aborda questões relacionadas à crise econômica, ao racismo e à presença da tecnologia em nossas vidas, mas não chega a aprofundar nenhuma delas, até porque nem é esse o objetivo de um livro como esse.
Mr. Mercedes é muito melhor que Revival (leia a crítica aqui), porém, ele padece do mesmo mal: a promessa de um final apoteótico que acaba se mostrando apenas assim-assim. Aqui pelo menos não dá a impressão de que ele não sabia como terminar a história, pois ela se resolve de maneira ok, é mais uma questão de escolhas muito fracas mesmo.
O livro está bem longe de um Cemitério ou um Zona Morta da vida, mas não é um livro ruim, pois se trata de uma leitura de entretenimento das mais eficientes. Para quem é fã do autor, não deixa de ser uma interessante oportunidade de vê-lo se arriscar num gênero diferente.