Angela Davis voltou ao noticiário internacional, no início de 2017, ao conduzir a Marcha das Mulheres, em Washington, um dia após a posse do presidente Donald Trump. Era um protesto contra a política reacionária do republicano. A ativista feminista negra ficou mundialmente conhecida nos 70, pela campanha “Libertem Angela Davis”. Na época, foi presa por participar de uma ação do grupo Panteras Negras. Depois de um ano em meio, ela foi inocentada das acusações.
Na prisão, Angela escreveu parte do ensaio Mulheres, raça e classe (Boitempo, tradução de Heci Regina Candiani, 2016). No trabalho, já uma referência para estudos da área, ela explica como a questão racial e a questão feminista se cruzam, defendendo que o conceito de classe não deve ser sobrevalorizado sobre os de raça e gênero. Destacam-se tópicos que põem relevância à atuação da mulher negra: como escravas, na campanha antirracista, na conquista do voto, na luta contra os massacres de seu povo.
Um ponto interessante da discussão é a igualdade de condições entre mulheres e homens negros durante o período da escravidão. As escravas trabalhavam em condições iguais aos homens em minas de carvão e nas fundições de ferro, construindo diques e nas linhas de trem. Já as brancas eram inferiorizadas se comparadas aos companheiros. A era industrial tornou inútil o trabalho delas. Assim, criou o conceito de feminilidade, popularizado em revistas e romances. Mulher se tornou sinônimo de “mãe” e “dona de casa”.
Um ponto interessante da discussão é a igualdade de condições entre mulheres e homens negros durante o período da escravidão.
Esta situação fez com que comparassem sua vida com a dos escravos. Ao longo de 1830, muitas brancas da elite ou trabalhadoras foram atraídas para o abolicionismo. Para elas, engajar-se no antiescravagismo era transgredir a feminilidade imposta.
As primeiras abolicionistas brancas foram Sarah e Angelina Grimke, da Carolina do Sul. A partir de 1836, começaram a fazer discursos em favor da abolição. A presença delas era algo inédito: “nunca antes mulheres haviam se dirigido a audiências mistas de modo tão regular e sem enfrentar gritos ofensivos ou escárnio por parte dos homens que consideram a oratória uma atividade exclusivamente masculina” (página 53).
As Grimke enfrentaram a oposição da igreja, para a qual ocupavam “o lugar e o tom de voz de homens como reformista política”. Com elas, também, a primeira idéia de uma luta interseccional. Ou seja, uma aliança entre mulheres e negros para conquistar direitos.
Uma das primeiras negras a falar em público foi a ex-escrava Sojourner Trouth, numa convenção de mulheres, em Ohio, em 1851. Homens hostis alegavam que a fraqueza feminina era incompatível com o sufrágio. O líder dos provocadores afirmou ser ridículo as mulheres desejarem votar. Não podiam sequer pular uma poça ou embarcar em carruagem sem um homem.
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Sojourneur mostrou o braço musculoso e exaltou-se: “Arei a terra, plantei, enchi os celeiros, e nenhum homem podia se igualar a mim. Não sou uma mulher? E podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem – quando eu conseguia comida – e aguentava o chicote da mesma forma. Não sou uma mulher? Dei à luz treze crianças e vi a maioria ser vendida como escrava e, quando chorei em meu sofrimento de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! Não sou eu uma mulher?” (página 71).
Sojourneur antecipava que o embate entre as feministas brancas e o movimento negro estaria por vir, depois da abolição, proclamada pelo presidente Abraham Lincoln, em 1863. Em 1865, Elizabeth Cady Stanton escreveu uma carta em que prioriza o voto das mulheres ao dos negros. Na carta, a feminista evocava o “infame negro ignorante”. Intelectuais racistas incitavam o conflito entre feministas e o movimento negro. Para o maior dos abolicionistas negros, Frederik Douglass, o voto aos negros era prioritário, pois corriam risco de vida em massacres promovidos por gangues racistas, como os que aconteceram em Memphis e Nova Orleans, em 1866.
Em 1870, foi aprovado o direito ao voto dos negros. Mas vários estados do Sul o restringiram. Em 1888, o estado do Mississipi legalizou a segregação racial e ratificou uma nova lei que proibia o voto aos negros. Outros estados sulistas o seguiram e, em 1894, já estava consolidado o sistema de segregação racial.
Os conservadores do Sul usavam a luta feminista para se contrapor ao racismo. Os negros eram “uma multidão de negros ignorantes, depauperados”, enquanto as mulheres tinham “caráter e posição, com recursos e educação”. Em muitos momentos, as feministas aceitaram esta contraposição, não entendendo que lutavam contra mesma opressão social.
As mulheres conseguiram o direito ao voto gradativamente, em cada estado americano, até que, em 1920, ganham pleno direito. Já os negros só teriam o voto estendido a todos os estados americanos em 1965, no governo do presidente Lyndon Jonhson. O trabalho de Angela Davis é fundamental por apresentar a construção da luta interseccional, demonstrando a intenção dos conservadores em criar conflitos entre os grupos minoritários. Graças a esta construção histórica, hoje os ativistas compreendem a necessidade de estabelecer uma luta conjunta para conquistar e consolidar seus direitos.
MULHERES, RAÇA E CLASSE | Angela Davis
Editora: Boitempo Editorial;
Tradução: Heci Regina Candiani;
Quanto: R$ 48,87 (248 págs);
Lançamento: Agosto, 2016.