No começo de A Mão Esquerda da Escuridão, Ursula K. Le Guin comenta como a ficção científica (FC) é vista como uma espécie de previsão do destino da humanidade. “Espera-se que o escritor de ficção científica tome uma tendência ou fenômeno do presente, purifique-o e intensifique-o para efeito dramático e estenda-o ao futuro. ‘Se isto continuar, eis o que acontecerá’”, escreve a autora. Na realidade, Ursula afirma que o que a FC faz é descrever e analisar o presente.
Em um dos seus episódios, o podcast “O Estado da Arte” discute a FC e traz, na introdução, algumas definições do gênero. Apesar da maioria delas discordar de Ursula e concordar com o tom profético, duas citações podem nos sugerir razões para explicar essa visão. Segundo Robert Heinlein, a ficção científica “é o único meio ficcional capaz de interpretar a mudança, a precipitação impetuosa da vida moderna”. Para John Campbell, diferentemente de outros gêneros narrativos, “ela [a ficção científica] assume que a mudança é a ordem natural das coisas, que há objetivos à frente maiores do que aqueles que conhecemos”.
Dessa forma, a ficção científica surge ligada ao pensamento racionalista, à revolução industrial e ao impulso tecnológico e científico. É o Frankenstein (1818) de Mary Shelley que firma as bases do gênero. Conforme dito no podcast citado, o livro abandona o místico para chegar na fagulha elétrica. Em primeiro lugar, ele traz a noção do relato próximo da realidade, que separa a FC e a Fantasia. Shelley também criou arquétipos que perduram até hoje – como o cientista ambicioso e o monstro com beleza interior.
Além disso, uma das interpretações do subtítulo da obra (O Prometeu Moderno) é que o portador do fogo do conhecimento não é Victor Frankenstein, mas o método científico. Graças a ele, qualquer conhecimento seria passível de ser acessado e compartilhado, mas daí surge a questão que dialoga diretamente com o pensamento de Ursula K. Le Guin: o que vamos fazer com esse conhecimento?
É interessante notar como o questionamento da ficção científica perpassa os relatos captados por Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Nobel de Literatura em 2015, em seu livro Vozes de Tchernóbil. Em abril de 1968, o reator nuclear de uma das usinas de Tchernóbil explodiu e espalhou diversas partículas radioativas em escala global. O território mais afetado foi o soviético e demorará centenas de milhares de anos para que os índices de radiação voltem ao normal.
Além disso, uma das interpretações do subtítulo da obra (O Prometeu Moderno) é que o portador do fogo do conhecimento não é Victor Frankenstein, mas o método científico. Graças a ele, qualquer conhecimento seria passível de ser acessado e compartilhado, mas daí surge a questão que dialoga diretamente com o pensamento de Ursula K. Le Guin: o que vamos fazer com esse conhecimento?
Essa catástrofe, considerada o maior desastre tecnológico do século XX, foi um dos estopins da derrocada do regime soviético. A tragédia ecoou de diversas maneiras no espírito dos homens e mulheres da URSS e podemos destacar três facetas: foi um desastre político, já que o regime se negou a atender às necessidades da população; um desastre cultural, uma vez que a criação bélica dos soviéticos se mostrou completamente ineficaz em destruir um inimigo invisível e as bases ideológicas não respondiam mais aos questionamentos existenciais dos sobreviventes; e um desastre científico, em razão da quebra das expectativas do desenvolvimento soviético. Diversos entrevistados revelaram como acreditavam estar manipulando o “átomo da paz”, diferente do “átomo da guerra” que foi responsável pelas bombas nucleares.
Svetlana traz as informações de maneira indireta. Seus livros são como colchas de retalhos, formadas pela colagem de extensos depoimentos, que resgatam a tradição da oralidade e da polifonia na literatura russa. No canal “Las hojas muertas y otras hojas”, Nicolas Neves relaciona a ascensão desse estilo de livro à falência da literatura. Em seu vídeo, ele comentou sobre a busca por novas formas de expressão literária capazes de preencher a necessidade de ficção ao mesmo tempo que se adeque ao modo com que o ser humano passou a se relacionar com a realidade.
Segundo Nicolas, “a literatura que havia até então não dava conta de explicar a realidade às pessoas que passaram por um evento da magnitude de Tchernóbil”. Por isso, existiu a demanda para um novo gênero literário que possibilitou a configuração de um livro com o de Svetlana. No entanto, acredito que é possível discutir a própria ficção científica dentro desses termos.
A literatura sempre teve destaque na vida cultural dos russos (e, consequentemente, nos países que gravitavam ao seu redor). Por conta disso, diversas vezes a falência descrita por Nicolas se deixou entrever nos relatos e trouxe uma aproximação da ficção científica com a literatura clássica. Uma nova configuração da ficção científica apareceu como um gênero possível de dialogar com tais anseios e angústias, longe dos entusiasmos da “era da física”, conforme descrito por uma das fontes.
Em um dos depoimentos, a professora e filóloga Nina Konstantínovna diz: “Agora, o que os preocupa é o que acontecerá depois da bomba atômica. Deixaram de amar os clássicos, eu recito Púchkin de cor para eles e vejo seus olhares frios, ausentes. Há um vazio… O mundo em torno deles é outro. Leem ficção científica, é isso que os atrai, ver como o homem se afasta da Terra, como opera com o tempo cósmico, como vive em mundos distintos”.