A música sempre foi uma maneira de contar histórias. Desde que o primeiro poeta leu a primeira poesia ao som da lira, a humanidade começou a flertar com a capacidade de contar histórias musicadas, sejam quais forem os temas. A contemporaneidade e o rock and roll exploraram essa capacidade ao máximo. Mais do que empregar um eu-lírico ou apenas permitir que um elemento do inconsciente chegue à tona, [highlight color=”yellow”]as letras de música hoje adquiriram a aura de um inventário de sentimentos e narrativas cuja riqueza pode ser comparada às obras literárias.[/highlight]
Basta evocarmos Tommy, do The Who, lançado em 1969, que permanece até hoje inscrito no rol de grandes álbuns do rock. Nele, ao longo de aproximadamente 75 minutos, é contada a história praticamente alegórica do jovem Tommy, que cresce cego, surdo e mudo até ter uma experiência transcendental e embarcar numa jornada que mistura fanatismo e drogas, até um desfecho trágico. Em entrevistas à época do lançamento, o guitarrista e líder da banda, Pete Townshend, contava versões diferentes da história do álbum e preenchia eventuais lacunas da narrativa, chegando inclusive a afirmar que Tommy teria tido origem em um sonho seu. Verdade ou não, o álbum entrou para a história não apenas por sua qualidade inegável e potencial vanguardista, mas também pelo potencial que carregam suas letras, cujas combinações inusitadas de vocabulário e associações ajudaram a conferir personalidade ao todo da obra.
Às vezes, o potencial narrativo das letras que formam o conjunto de um álbum pode se sobrepor à melodia. Do mesmo modo que Bob Dylan (cujas letras, vale lembrar, já foram inclusive premiadas com um Nobel de Literatura) e mais tarde Eliot Smith e tantos outros considerados herdeiros de uma certa tradição trovadoresca, a habilidade de construir narrativas, ou mais ainda, de usar a realidade como substrato sem recorrer a figurações mitológicas, sempre foi valorizada. Talvez ainda mais do que isso, a capacidade que a narrativa tem de colocar a melodia em segundo plano, e fazer com que a experiência de ouvir um álbum do início ao fim seja muito semelhante a de ler um livro.
De maneira análoga aos livros, as letras também passaram por um momento em que a autoria incerta e a natureza obscura do eu-lírico pareciam dominar.
De maneira análoga aos livros, as letras também passaram por um momento em que a autoria incerta e a natureza obscura do eu-lírico pareciam dominar. Amores interrompidos e tristezas abstratas que supostamente fariam parte da vida de qualquer pessoa povoaram o cenário musical durante muitas décadas. Basta lembrar de qualquer banda que já chegou às paradas de sucesso, como, por exemplo, o Portishead e seu hit “Glorybox”. Amor e desilusão fazem parte do repertório de qualquer artista. Poucos, porém, são aqueles que se aventuram além do que é sucesso certo de público e crítica e usam a música como um mergulho na experiência individual e naquilo que nos caracteriza como seres humanos.
Nos últimos tempos, no entanto, o que estamos testemunhando é uma guinada nesse sentido. Se na literatura podemos afirmar que o autor retornou com força total, não sendo mais apenas alguém cujo nome está na capa do livro mas como aquele que protagoniza ou está no centro do narrado, o mesmo pode ser visto no mundo da música. [highlight color=”yellow”]O autor das letras não é mais apenas um eu-lírico ou um alter-ego qualquer, mas uma persona que é fruto direto das experiências do músico ou compositor.[/highlight] Foi assim em Funeral, primeiro álbum de estúdio do Arcade Fire, lançado em 2004, cujas letras são o resultado das experiências de morte e perda de vários de seus integrantes nos meses que antecederam a produção do álbum.
O mesmo acontece com Carrie & Lowell, de Sufjan Stevens. Lançado em 2015, o sétimo álbum de estúdio de do cantor e compositor e seu tema não poderiam ser mais intimistas. Todas as letras do disco remetem à mãe do compositor e a seu padrasto, o casal que ilustra a capa numa foto desgastada pelo tempo. Abandonado pela mãe, que era esquizofrênica, alcoólatra e depressiva, ainda menino, Sufjan deixa claro como a relação com a mãe marcou sua vida. Em Carrie & Lowell tudo é sutil, sussurrado e contado à meia voz com melodias doces, talvez para contrabalançar o teor extremamente soturno e triste da totalidade das faixas.
Em 11 faixas e pouco mais de 40 minutos, Sufjan analisa a morte de sua mãe e seus sentimentos confusos de perda e depressão. Em “Death with dignity”, primeira faixa, serve como metonímia do tipo de mergulho que o cantor fará: “Spirit of my silence I can hear you/ But I’m afraid to be near you/And I don’t know where to begin”. Alusão direta ao “Death with dignity act” de 1994, votado no Oregon, estado onde o cantor passou sua infância e adolescência, e fala sobre suicídio medicamente assistido, para além de um diálogo entre a persona do presente de Sufjan e seu eu enlutado, ainda impossibilitado de lidar com a perda.
Na verdade, o que se desenrola nas letras a partir desse chamamento é uma colcha de retalhos onde as memórias boas da mãe e do padrasto vão rivalizar diretamente com o abandono, a dor e a incompreensão. Em “Eugene”, por exemplo, tudo é doçura nas lembranças dos verões que, ainda menino, Sufjan passou com o casal: “Emerald Park, wonders never cease/The man who taught me to swim, he couldn’t quite say my first name/Like a Father he led community water on my head/And he called me “Subaru”/And now I want to be near you”. É provável que o momento mais emotivo do álbum seja “Fourth of July”, na qual Sufjan retoma o último diálogo que teve com sua mãe agonizante, mediado por médicos e enfermeiras, e um desejo intenso de comunicar o amor que tinha por ela, apesar de tudo.
A música é capaz de performar pequenos milagres. Ao longo de quase 40 minutos de audição, Carrie & Lowell traz a mãe de Sufjan Stevens de volta à vida e nos leva de volta à infância do cantor. Letra e música, o álbum é passeio ao centro de um vulcão cuja erupção terminou há pouco, tudo são cinzas incandescentes, luto e inconformidade. E esse também é o grande mérito da obra, que como todas as obras de arte, serve para nos lembrar que a vida não cabe na brevidade de um epitáfio tampouco nas breves linhas de uma biografia, mas que uma vida pode ser muito mais, mesmo que todos nós estejamos destinados a morrer um dia.