Uma casa pode ser a estrutura de tudo. Uma casa pode ser a razão de algo começar, pode ser a razão para que algo não termine, o abrigo inexorável a tudo que vem de fora, mas frágil ao que vem de dentro. Casas são feitas de memórias, de momentos no tempo e espaço gravados nas paredes e nas mobílias que transformam tijolo, cimento e madeira em algo vivo.
Uma casa antiga que abre suas portas após muito tempo é uma metáfora que resume o segundo disco da banda American Football; eternizada e venerada por um pequeno grupo de fãs desde que lançou o único disco em 1999, com uma melancólica casa estampada na capa. Dezessete anos depois, conhecemos o interior da casa. Escuro, iluminado somente por um feixe que vem da porta. Uma casa habitada por duas pessoas presas a ela, presas à cama, a uma vida que já não existe mais, a lembranças de quem eram há tanto tempo atrás que nem recordam mais. Uma casa assombrada por fantasmas e memórias.
O segundo álbum do American Football é, provavelmente, o álbum mais aguardado dos últimos anos na música emo. É envolto em uma mística criada ao redor de uma banda que mal existiu. Que durou três anos, lançou um EP e um disco em 1999, fez alguns shows em porões em Illinois e acabou. O trio formado por Mike Kinsella, Steve Lamos e Steve Holmes, no entanto, virou um desses casos de bandas seminais. O disco com a casa na capa foi sendo descoberto pelos anos seguintes e inspirou uma geração inteira de novas bandas. Se não fosse American Football, Braid, Mineral e Cap’n Jazz, não existiria a cena emo do meio-oeste dos Estados Unidos na última década. Embora Mike Kinsella tenha continuado ativo com o Owen e o Cap’n Jazz tenha se desmembrado em outras bandas, foi aquele disco de 1999 lançado por três amigos que tocou muita gente fundo o suficiente para que pensassem “ei, eu também quero fazer isso”. Era a combinação perfeita das letras sofridas e poéticas com relatos do homem comum, de grandes harmonias, estruturas instrumentais complexas do math rock e uso de instrumentos de sopro junto de guitarras e baixo.
O LP2, como está sendo chamado o novo disco, é o resultado de uma reunião do trio que começou em 2014, quando a Polyvinyl relançou o disco de 1999 com novas demos e trechos perdidos das gravações antigas do American Football. O sucesso fez a banda entrar em turnê e, como disse Kinsella em uma entrevista, reaprender a tocar algumas músicas que não ensaiavam há 15 anos. Depois de relembrarem a casa antiga, resolveram entrar nela.
Tudo é pensado nos detalhes, cada dedo arrastado na corda da guitarra que cria um leve rangido faz parte do ambiente.
De lá pra cá, Kinsella lançou dez álbuns como Owen, então é difícil não relacionar com essa discografia o som do LP2, mas, mesmo assim, o que temos aqui é algo único. As letras têm as estrofes curtas como em 1999, falam sobre essa casa cheia de assombrações e memórias de tempos melhores. Falam sobre um homem que não consegue mais encontrar o caminho dessa casa. As harmonias amadureceram com os músicos e o trio virou um quarteto com a chegada do baixista Nate Kinsella, primo de Mike. Tudo é pensado nos detalhes, cada dedo arrastado na corda da guitarra que cria um leve rangido faz parte do ambiente. As pausas, as duas guitarras que quase entram em confronto – cada uma para um lado.
Jovens em 1999, eles analisavam memórias da adolescência no primeiro disco. Com aquele toque de quem chegou ao começo da vida adulta e não lembra com clareza as motivações adolescentes. Havia desde lá o sentimento solidão tão latente nas canções de Kinsella. O instinto de buscar estar sozinho e querer que alguém entenda isso para estar ao seu lado quando ele voltar. Está em “I’ll See You When We’re Both Not So Emotional” em 1999 e está em “Where Are We Now” em 2016, agora com duas pessoas sozinhas na mesma casa. Uma casa em que o narrador não sabe se as fechaduras o impedem de sair ou da companheira entrar. Um quarto no qual o narrador está disposto a ficar amarrado para sempre se for por ela. Uma casa que impede algo de terminar.
A obra do American Football é melancólica e cinza, mas bela até a última gota. É música daquele tipo que vive ao seu lado, guardada em um canto especial, pronta para as ocasiões necessárias. Se existem os discos para momentos alegres, românticos, tristes ou de luto, os do American Football são como um alento naqueles momentos em que refletir ao não ouvir a sua voz é a melhor opção. É, assim como a casa, um abrigo, por mais assombrado que esteja.