Arthur Nogueira é jovem, mas tem um currículo extenso: quatro discos, parcerias com o imortal Antonio Cícero e gravações por Gal Costa e Ana Carolina. Cantor de voz intensa, é também um poeta; mais que isso, um completo defensor e apaixonado pela poesia.
Seu disco mais recente, Rei Ninguém, lançado pela Joia Moderna – gravadora de Zé Pedro – e pelo Natura Musical, é como um mergulho na sua poesia e também no seu amor pelos poetas. O álbum está sendo lançado agora em formato de vinil, pela Circus Produções e, para coroar esse momento, chega agora o clipe de “Ninguém”, canção adaptada de poema da alemã Rose Ausländer e que foi transformada em imagens sob direção de Zé Pedro, DJ, produtor e agitador cultural.
De caráter minimalista, o que salta aos olhos no vídeo é uma força extrema. Há a voz de Arthur, a tensão da imobilidade e as forças icônicas que o circundam: tudo confluindo para que a canção cresça ainda mais. Dê play e entenda:
Envolto de ícones pop diversos, que vão de Itamar Assumpção e Maria Bethânia a Basquiat e Iggy Pop, o interessante é irmos descobrindo o cenário enquanto a câmera se afasta lentamente. Nesse jogo vamos vendo “encontros” e justaposições de artistas diversos, que dialogam e instigam a obra de Arthur, transpassadas pelas escolhas de Zé Pedro.
Arthur ficou imóvel enquanto Zé ordenava esse cenário que vemos na tela, e é pelo olhar sempre fértil dele que surge essa confluência de artistas que envolve e se amalgama na canção “Ninguém”. Os dois responderam as mesmas três questões sobre o vídeo e seus olhares são tão enriquecedores que merecem ser lidos com atenção:
Escotilha » Como foi a criação do vídeo?
Arthur Nogueira » O Zé Pedro teve a ideia e convidamos o Luan Cardoso para ajudar a executá-la. O Luan trabalha comigo há algum tempo e foi quem cuidou de todo o material em vídeo do projeto “Rei Ninguém”. Escolhi os livros na casa do Zé, montamos o cenário e gravamos apenas dois takes em plano sequência. Quando dirige clipes, apesar de sua personalidade estridente, o Zé Pedro tem uma visão que me interessa muito, que busca o essencial. Sou um compositor, gosto de poesia, então me interessam bem mais o clipes que não limitam, mas dão asas à imaginação e ao pensamento.
Zé Pedro » Nesse tempo de falsas urgências e mil possibilidades tecnológicas, ironicamente, o essencial ainda é a força maior. Damos o play em milhões de vídeos diariamente cheios de manobras cênicas e nunca chegamos ao fim por já estarmos acostumados ao excesso de informação. Criei então para o Arthur uma situação de quase imobilidade, em que ele aparece envolto por ícones da cultura pop num plano sequência no qual a contemplação desses ídolos é possível conforme os versos da canção se anunciam.
‘Hoje a palavra ‘ninguém’ rima com alta qualidade e pertinência. Em geral, as mídias estampam um passado de glórias ou um presente de conchavos’. Zé Pedro
Quais as referências e intenções com essa produção?
Arthur Nogueira » Rose Ausländer, a autora do poema, era judia. Durante a guerra, foi obrigada pelos nazistas a viver em um gueto com sua mãe. Em 1946, depois de um período na clandestinidade, mudou-se para os Estados Unidos, onde se exilou da língua materna por uma década. Sua obra como um todo, inclusive esse poema, expõe as sensações dessas dolorosas experiências. Quando escolhi o título do disco, pensava não só na obra e na história de Ausländer, mas também no “Rei Ninguém” como representação da crítica, da possibilidade e da mudança, da imaginação e da liberdade.
O que a gente vê hoje em dia, nos Estados Unidos e na Europa, por exemplo, são políticas que reduzem os indivíduos a comunidades, seja por uma etnia, uma nacionalidade, uma religião etc. Eu sempre prefiro o indivíduo à comunidade, a razão à identidade. Fico com Antonio Cícero, quando este afirma que a essência da modernidade é cada homem poder ter a ousadia de se considerar o centro do mundo. O título “Rei Ninguém” evoca a identidade racional, a autoridade de decidir o grau de prioridade que atribuímos a cada uma de nossas identidades tradicionais. Os artistas que trouxemos para o clipe me deram e dão lições de coragem para ser o que quiser e fazer minha música como acho que tem que ser.
Zé Pedro » Hoje a palavra “ninguém” rima com alta qualidade e pertinência. Em geral, as mídias estampam um passado de glórias ou um presente de conchavos. Escolhi imagens de grandes artistas que em sua maioria foram desprezados em seus primeiros anos e hoje desfrutam da imortalidade apesar do remorso e do atraso dos seus detratores.
Como a relação de amizade entre vocês dois, Arthur e Zé, influi nessa produção artística realizada a partir da Joia Moderna?
Arthur Nogueira » Pouco ou quase nada. Aliás, já vi o Zé Pedro romper amizades por discordar de certas escolhas artísticas dos seus amigos. Ele acredita na música sobre todas as coisas e, com muita integridade, não coloca nada acima dela, nem mesmo a amizade. É por isso que fico tão feliz pelo respeito e carinho que ele tem pelo meu trabalho. O Zé é um cara admirável, uma enciclopédia cultural, um parceiro íntegro, que me estimula e me inspira a ser o que sou, como sou.
Zé Pedro » Arthur Nogueira chegou a mim com seu trabalho. Não havia amizade. Seguindo apenas minha intuição, combinamos um disco que só ouvi quando já estava a caminho da fábrica. Dali pra frente, Arthur Nogueira virou um dos artistas que mais me interessam dentro da nova música brasileira. Acima de tudo por sua postura altiva de não se embrenhar em vigarices afetivas e comerciais para ser respeitado e ter sua obra admirada. É um grande cantor, músico e poeta.