Colaboraram Alejandro Mercado e Maura Martins.
“Eu canto muito mais Chico do que Caetano. Eu posso explicar. Porque Chico tem uma poesia, um modo de escrever letras com uma alma feminina muito à mostra, muito aparente, e como eu sou uma intérprete, eu gosto muito de cantar as coisas dele; me identifico mais com as letras do Chico. E eu acho que eu sou uma das melhores intérpretes de Chico”. Assim Maria Bethânia explicava, em entrevista ao Jornal Hoje em 1978, as razões para que interpretasse mais canções de Chico Buarque do que de seu irmão, Caetano Veloso.
Cúmplices de aniversário, Chico e Bethânia parecem ambos regidos pelo aspecto comunicacional do signo de Gêmeos, o que transparece em suas carreiras de forma distinta, ainda que próxima. Ambos são enfeitiçados pelas palavras, sejam elas lidas, declamadas ou cantadas. Chico consolidou sua reputação enquanto compositor por músicas que priorizam o duplo sentido, o jogo linguístico do que se esconde e se mostra, dizendo muito no dizer e no não dizer.
Já Bethânia escolheu a dedo tudo a que emprestaria sua voz, enchendo de vida as palavras que trouxe ao mundo. Não por acaso, seus shows sempre mesclaram a música e a poesia, compreendendo que a força daquilo que diz não se reduz a uma única linguagem. Nem em um único sentido, já que “música é perfume”, como já dizia o documentário sobre a cantora.
Separados por dois dias, ambos comemoraram aniversário este mês: Bethânia fez 70 anos no sábado, 18; Chico Buarque completou 72 ontem, 19. Da união de seus talentos o Brasil ganhou um dos discos mais incríveis já gravados ao vivo. Chico Buarque & Maria Bethânia – Ao Vivo tem lugar cativo na lista de maiores momentos da música brasileira. Gravado no Canecão em 1975, o disco era uma espécie de presente da gravadora Philips para a filha de Oyá, que completava 10 anos de carreira.
Cúmplices de aniversário, Chico e Bethânia parecem ambos regidos pelo aspecto comunicacional do signo de Gêmeos, o que transparece em suas carreiras de forma distinta, ainda que próxima. Ambos são enfeitiçados pelas palavras, sejam elas lidas, declamadas ou cantadas.
Em plena ditadura, Chico e Bethânia viviam momentos cruciais em suas carreiras. Enquanto o cantor era um dos artistas mais perseguidos pela censura (Chico Canta, inicialmente lançado como Calabar, sofreu inúmeros vetos pelos censores, e sua primeira tiragem foi retirada das lojas por ordem do regime militar), Bethânia caminhava em desvencilhar-se da pecha de “musa da canção de protesto”, ganhado em virtude de ter participado do musical Show Opinião – aliás, outro petardo dos álbuns ao vivo lançados em território nacional.
Iniciada no dia 6 de junho de 1975, a temporada da dupla se estendeu até o feriado de finados, no dia 2 de novembro do mesmo ano. O Canecão, icônica casa de shows da capital fluminense, recebeu 118 apresentações.
O espetáculo foi dirigido pelo ator e diretor Oswaldo Loureiro, que no início dos anos 1990 dirigiu o Teatro Guaíra, em Curitiba, e contou com assessoria de Caetano Veloso, Ruy Guerra e do próprio Chico. Perinho, o produtor musical de confiança de Bethânia, Caetano e Gilberto Gil (de quem dirigiu shows na década anterior), foi responsável pela direção musical do encontro.
Das 18 canções que compõem Chico Buarque & Maria Bethânia – Ao Vivo, Chico interpretou quatro sozinho enquanto Bethânia seis; sete canções foram interpretadas em dueto. Havia um equilíbrio no repertório, marcado por canções que os geminianos tinham por hábito de cantar, mas havia, ainda, espaço para novidades como “Flor da Idade”, do filme Vai Trabalhar, Vagabundo e da peça Gota d’água, com uma citação ao poema “Quadrilha” de Drummond, “Sem Açúcar”, tema de Gota d’água, e “Vai Levando”, uma parceria de Chico com Caetano.
Obviamente, esse encontro de titãs, que já arrepiava a partir da primeira faixa, não passou incólume ao regime militar. Como de costume, os órgãos reguladores da censura assistiram a íntegra do espetáculo para garantir que tudo estivesse de acordo. A dupla recebeu um “ok” para dar continuidade às apresentações no Canecão, porém, com a condição de não interpretar “Tanto Mar”, composta naquele ano como saudação à Revolução dos Cravos (movimento que depôs o regime ditatorial do Estado Novo em Portugal). Para que não houvesse problemas, a música foi apresentada apenas em sua versão instrumental. Curiosamente, na versão brasileira do EP, a canção segue à risca o script dos shows no Canecão, enquanto na versão portuguesa há a versão orginal, gravada apenas lá.
“Olê, Olá” abria o disco já demonstrando a incrível sintonia entre a dupla. Chico Buarque, sentado em um banco, violão em mãos e um microfone à frente; Bethânia alternando seu vestuário, ora com um vestido vermelho, ora com um branco, ora de calça jeans e camisa branca com um colar no pescoço. O diálogo cruel de “Sinal Fechado”, canção de Paulinho da Viola, é amplificado na voz dos dois: “Tanta coisa que eu tinha a dizer / Mas eu sumi na poeira das ruas / Eu também tenho algo a dizer / Mas me foge à lembrança”.
Não fosse o suficiente, os geminianos emplacavam a sequência com “Sem Fantasia”. Um vazio sem limites domina o peito, dilacerado pelo sofrimento da separação. Em “Sem Açúcar” e “Com Açúcar, Com Afeto”, Chico revela toda sua mágica em expressar-se com alma feminina aparente, como a própria Bethânia revelou na entrevista que abre este texto.
O disco ainda nos apresenta outras releituras de canções de grandes compositores, como “Camisola do Dia” de Herivel Martins e David Nasses, “Foi Assim” de Lupicínio Rodrigues, “Cobras e Lagartos” de Sueli Costa e Hermínio Bello de Carvalho e a primeira parte de “Gita”, uma das principais criações de Raul e Paulo Coelho.
Ouvir Chico Buarque & Maria Bethânia – Ao Vivo no fim de semana de aniversário de ambos é uma maneira de comemorar junto deles a data, exemplo máximo do clichê de “o aniversário é nosso, mas o presente é seu”.
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