O matemático e jornalista americano Stephen Witt passou anos infiltrado em redes de pirataria. Entre 1997 e 2005, chegou a impressionante marca de 1.500 gigabytes de músicas armazenados em diversos HDs. Seu interesse por música e pelo fenômeno da pirataria – que acabou sepultando o CD e causando dores de cabeça para executivos de grandes gravadoras e artistas de diversas gerações – o levou a pesquisar o tema a fundo. O trabalho resultante é o ótimo Como a Música Ficou Grátis, lançado este mês pela Intrínseca. É um dos melhores livros sobre música que você lerá.
Witt divide seu objeto de estudo em quatro frentes. A primeira é a história do MP3, traçando suas origens desde as pesquisas de psicoacústica na Alemanha até a história de como um time de pesquisadores liderado pelo engenheiro Karlheinz Brandenburg começou a desenvolver um algoritmo que fosse capaz de comprimir um arquivo de áudio para um tamanho 12 vezes menor do que uma faixa de CD. O relato é tanto técnico quanto sentimental: o livro revela os bastidores da ciência e do mundo das inovações tecnológicas, com suas exigências e politicagens, assim como o MP3 só vingou por causa da pirataria. Do contrário, o formato mais popular de áudio digital teria se tornado apenas uma nota de rodapé dos anais da história da música.
A jornada do MP3 é entrecortada pela trajetória de Doug Morris. Seguindo os passos de Morris, o livro nos entrega detalhes valiosos e reveladores de como a indústria musical se comportou ao longo dos anos, que tipo de estratégias eram usadas para encontrar novos sucessos e como subestimou a internet e a pirataria, mesmo quando ela acontecia bem debaixo do nariz de suas fábricas de discos. Morris foi um executivo das grandes gravadoras (passou pela BMG, pela Time Warner, chegou ao topo da indústria com a Universal e migrou para a Sony não faz muito tempo) e até hoje é reconhecido como grande responsável por lançar uma enorme parte dos artistas que conhecemos.
A essas histórias soma-se a narrativa da vida de Dell Glover, um negro subempregado da Carolina do Norte, fã de tecnologia e de música, que quase sem querer virou uma das peças centrais da pirataria mundial. Se você baixou muitos discos de 2000 para cá, é quase certo que boa parte deles teve participação de Glover, um membro obscuro da Scene e do Rabid Neurosis (RNS), o grupo pirata mais famoso da internet. É com a história de Glover que o ordinário se torna extraordinário: apesar do grande esquema de vazamento de álbuns montado online, um cara comum, com aspirações e problemas comuns, se envolveu em algo tão abrangente e ruidoso para a indústria do entretenimento que nem ele mesmo tinha noção de sua importância.
Witt não chega a se posicionar a favor da pirataria, mas dá voz aos vários piratas que retrata ao longo do livro e fica claro que quase todos não faziam ideia de que estavam cometendo um crime.
Por fim, conforme todas as três frentes avançam, cada uma a seu modo, Witt relata como a polícia de diversos países, incluindo a Interpol, a Scotland Yard e o FBI, montaram arapucas para pegar os piratas. Também não escapa das lentes do jornalista as desastrosas ações judiciais da indústria fonográfica movidas contra usuários, e não contra os responsáveis pelos vazamentos.
A organização dos textos e a multiplicidade de pontos de vista são duas das principais qualidades de Como a Música Ficou Grátis. Todas as frentes são contadas de forma que o leitor vá juntando sozinho as peças em sua cabeça, sabendo o que Brandenburg e seus pesquisadores faziam na Alemanha com o MP3 ao mesmo tempo em que Doug Morris passava a coordenar o catálogo da Warner e Glover arranjava emprego numa fábrica de CDs. Conforme a cultura da pirataria vai se instaurando e mais e mais pessoas do mundo todo começam a vazar álbuns inteiros, filmes e softwares antes de seus lançamentos oficiais, testemunhamos a acentuada queda nas vendas de CDs, a epidemia de iPods e as reações torpes da indústria frente ao problema que parece não ter solução. Witt não chega a se posicionar a favor da pirataria, mas dá voz aos vários piratas que retrata ao longo do livro e fica claro que quase todos não faziam ideia de que estavam cometendo um crime.
Como a Música Ficou Grátis é um relato capaz de explicar muitas coisas para seu leitor. Acompanhamos ao longo dos últimos 15 anos tudo isso ocorrendo em tempo real, mas sem saber dar nome aos envolvidos e muitas vezes não sabendo ao certo o que ocorria nos bastidores da Justiça e do mercado. Ao final, fica evidente o que já sabíamos: que a pirataria prejudicou o império das gravadoras de uma forma quase irreversível. Mas por meio das narrativas e informações apresentadas no livro temos mais perspectiva sobre a questão e suas consequências humanas e econômicas, afastando a compreensão simplista do fenômeno. E isso é chave para entender os mais recentes passos de uma indústria que agoniza e porque tantos artistas mudaram a ênfase de sua estratégia de marketing.
Seja do ponto de vista do avanço tecnológico ou a ampla visão sobre a indústria, Como a Música Ficou Grátis é fundamental para que o interessado em música saiba a importância de se levar em conta o mercado também, e não só os méritos artísticos de um produto ou artista, ao discutir a música. Além disso, é uma análise de um comportamento social que nasceu nos últimos anos do século XX e estabeleceu as mudanças do entretenimento no século XXI. Mudanças essas que vieram de pessoas comuns, a maioria anônimos da classe trabalhadora. Stephen Witt retratou, assim, a partir do MP3, como uma revolução ocorreu. De alguma forma, todos nós fomos parte dela.