Fase. Substantivo feminino singular. Uma etapa, período, independente se bom ou ruim. Um recorte de algo em desenvolvimento ou que sofre sucessivas alterações. Interessa menos a morfologia do termo e mais ao que ele se refere neste texto específico.
Artistas são seres humanos, e como tal também enfrentam fases em suas carreiras. Elas podem refletir inúmeras coisas: amadurecimento, conflitos, incertezas, experimentações e mais um sem número de possibilidades. De fato, no âmbito musical, fase pode ser interpretado, ainda, como a passagem de um estágio a outro da carreira, como quando nas encruzilhadas da vida somos postos diante da necessidade de decidirmos qual caminho seguir.
Por vezes, essas mudanças, ou novas fases, podem representar um arco narrativo na carreira do artista, o ponto da virada. Aquele momento em que os números passam a percorrer a mesma trigonometria, permitindo a melhor compreensão da equação artística. Raphael Moraes vive caminhando por suas fases, que já foram representadas pela Poléxia, pela Nuvens e por sua carreira solo. Mas artista que se preza compreende desde cedo que a imutabilidade não lhe é uma característica inata, pelo contrário. E desta maneira Rapha virou Rapha Moraes & The Mentes, uma singela contribuição do camaleônico Arnaldo Baptista, aqueles mesmo, o ex-Mutante. Além de Rapha, Allan Yokohama, Juninho Jr., Amandio Galvão e Marcos Nascimento completam a equipe. E seu primeiro registro sob essa nova “fase” chegou até o público no último mês de junho.
https://www.youtube.com/watch?v=fqToMrjObE0
Corações de Cavalo é um ‘disco de formação’, onde o músico expõe de forma pormenorizada seu eu-lírico em justaposição ao homem Raphael.
Corações de Cavalo é um “disco de formação”, no qual o músico expõe de forma pormenorizada seu eu-lírico em justaposição ao homem Raphael. E se há espaço para o desnudamento íntimo de “Arritmia” (assista o clipe da música acima), a canção que Rapha compôs em homenagem à sua irmã, falecida precocemente, há também espaço à experimentação entregue em “Da Mente”.
Rapha Moraes & The Mentes elaboram um retrato estético e social ousado, que não se resume à psicodelia de boa parte de Corações de Cavalo, mas avança a camadas de gypsy rock em “Homens Bomba”, a canção urgente que abre o álbum; se enrosca no indie obscuro dos anos 2000 em “Cavalaria de Centauros” e até nas poesias da MPB de enorme poderio linguístico de Chico César em “Iniciação pro Sr. Liberdade”. Mas não há segredos, é na psicodelia tipicamente subvertida na Pindorama tupi-guarani que está incrustado o gene de Corações de Cavalo.
Da tropicália a Rapha Moraes & The Mentes traz Tom Zé, Os Mutantes e os arranjos dos Novos Baianos. Se não fosse bastante essa ode criativa ao âmago de nosso modernismo antropofágico, eles ainda trafegam pela força rítmica e melódica do Cordel, emulando tambores e dando ares teatrais a seu espetáculo musical em “Adeus”, seguindo fórmula muito semelhante em “Natureza Selvagem”. Eis que “Arritmia” retorna ao centro do palco. Rapha Moraes faz da canção uma ponte ao coração, preenchendo o disco com a energia mais potente de seu amor à sua irmã em forma de música.
Das coincidências cotidianas, Corações de Cavalo também nos leva a uma outra fase, nos tira da zona de conforto e joga referências tão bem acertadas, coesas e homogêneas que limpam a desarmonia da Curitiba fria a partir de um mergulho em nós, ou neste caso, no outro. 2016 está sendo incrível para a música paranaense. Que continue assim.