O que é a arte, se não uma grande válvula de escape para suportar o mundo e suas mazelas?! Através dela retratamos o que vemos e sentimos, usamos sua diversidade de significados como conforto, para quando o sentimento nem sempre é de felicidade ou amor. E nessa pluralidade de opções há sempre espaço para novas experimentações, como o Coral Gay de Curitiba, primeiro coro LGBT do país, e um dos únicos em atividade atualmente.
Conheci o trabalho do coral apenas em 2017, quando pude ir até o esconderijo de Fábio Cezar Gottschild, o músico por trás do projeto, que me recebeu em seu estúdio, onde leciona suas aulas de música. Fábio é gay, assim como boa parte de sua equipe. Na época de nossa primeira conversa, o projeto ainda era um coral escola, atendia em média 21 pessoas e, além da regência iniciante e avançada, contava com aulas de violão, baixo e outros instrumentos musicais. Tudo de forma gratuita. Hoje, devido a fatores como a falta estrutura e apoio de outras entidades, o grupo atua de forma reduzida.

A necessidade do coro surgiu quando o professor percebeu uma grande demanda de alunos incomodados com o ambiente de aprendizado da música. “No mundo das artes, é comum ter pessoas LGBT. Durante os anos que dei aula, tive muitos alunos que diziam que se sentiam confortáveis comigo, porque outros professores tiravam sarro dos seus jeitos. Quer dizer, você vai escolher um aluno pela aparência dele? Porque a pessoa é negra ou não enxerga, ela não serve?” me conta Fábio, ao relembrar o início do projeto.
Já que seria impossível acolher muitas pessoas para aulas de um único instrumento, visto os custos de cada um, o coro foi a maneira mais barata de dizer para a sociedade que a “minoria” LGBT também está na música erudita, minoria dita entre aspas, porque Fábio não aceita ser enquadrado em um grupo que, para ele, não condiz com a realidade. Segundo o professor: “se todos os gays do Brasil saíssem do armário, faltariam armários nas Casas Bahia para tanta gente!”, brinca.
‘Se todos os gays do Brasil saíssem do armário, faltariam armários nas Casas Bahia!’.
“Mas, por que gay? Qual a necessidade de uma palavra que tende a afastar o público? Por que não utilizar apenas Coral de Curitiba?”, são alguns dos questionamentos que os integrantes recebem sempre que dizem o nome do coral do qual participam. Bom, lembram que no início do texto afirmei que a arte tende a ser uma válvula de escape? O CGC é a válvula de escape de Fábio e seus pupilos, um lugar onde não há olhares de julgamento para a sexualidade, para a voz “menos máscula”, para a aparência ou cor da pele. Não há julgamento.
E se, para algumas pessoas, o “gay” logo no nome afasta uma parcela do público, para outras esse é o motivo da empatia imediata. Foi assim com o jornalista Fernando Henrique Gomes Nunes, um dos coralistas mais antigos do grupo, que conheceu o projeto em 2015, ao assistir a apresentação de Natal que eles costumavam realizar todo ano na Igreja Anglicana de Curitiba. Recém chegado na cidade, o maceioense ficou intrigado com a possibilidade de um coro gay. “Eu vi no Facebook que teria uma apresentação, obviamente me atraí pelo gay, né? Pensei ‘nossa um coral gay? Como será que funciona?’. Fiquei curioso e fui lá ver, achei tão legal que quis participar”, relata Fernando.
Mesmo com o baixo custo para sobreviver, o CGC depende, atualmente, da estrutura cedida pelo Departamento de Artes da UFPR para dar continuidade aos ensaios. Mas isso não é o suficiente, muitas apresentações do grupo não são remuneradas, e sem incentivo de órgãos públicos ou instituições ligadas ao público LGBT, é Fábio quem arca, na maioria das vezes, com o mínimo de figurino necessário para seus coralistas. “Às vezes, você coloca na ponta do lápis até que ponto vale a pena manter um coro que nesse último ano não se apresentou, porque não temos condição financeira para alugar um espaço, não recebemos convites para apresentações e, quando tem, a gente não tem corpo de coro suficiente para apresentar.”
O grupo sabe que um dos motivos para não haver tantos convites para apresentações está intimamente ligado ao nome “polêmico”. Fábio já recebeu inúmeras propostas que deixaram de se concretizar por causa do preconceito com o nome do coral. O que já fez, inclusive, com que os participantes cogitassem a mudança do mesmo. Mas, segundo eles, ainda que esse fato dificulte a divulgação do coro, não há razões para esconder aquilo que se é. Afinal, se a sociedade não consegue aceitar um simples adjetivo, quando ela vai aceitar que a comunidade LGBT existe e também está manifestando sua arte?