Uma das principais lições que aprendemos na crítica cultural é fazer avaliações pelo que são e não pelo que gostaríamos que fossem os produtos culturais. Por mais difícil que o exercício seja, é fundamental para encarar o produto cultural em sua totalidade, desvinculando os anseios pessoais e estabelecendo um distanciamento necessário para a avaliação. É com isso em mente que mergulhei em Everything Now, quinto disco de estúdio da Arcade Fire.
A banda canadense é, hoje, a mais interessante e completa em atividade no mundo. Entre suas principais virtudes esteve, sempre, a capacidade de ler o mundo, seja as sensações e impressões sobre o cotidiano, seja as sonoridades em voga, e criar, a partir disso, obras originais e complexas que, à sua maneira, marcaram época desde seu surgimento. Hoje, é impossível falar em música pop (sob suas mais variadas apresentações, incluindo o rock) sem levar a obra da Arcade Fire em consideração.
É importante que o leitor (e mais ainda o ouvinte) tenha isto em mente antes de tecer qualquer espécie de comentário a cerca de Everything Now, álbum que vem mexendo com os ânimos de público e crítica. Na base do amor ou ódio, parece ter ficado esquecido que a Arcade Fire nunca criou uma sonoridade verdadeiramente inédita, mas sempre soube aglutinar as referências (e influências) para estabelecer uma “cara” às suas composições. E foi isso que criou essa imagem de superbanda que carregam até hoje – e que dá margem a algumas desilusões.
Everything Now é uma crítica mordaz ao mundo contemporâneo, ao mal-estar que se espalha neste universo moderno.
Funeral (2004) e Neon Bible (2007) ditaram a verve criativa da banda, enquanto The Suburbs (2010) foi o primeiro marco do experimentalismo do grupo. Os dois primeiros discos deram “gordura” suficiente à banda para que pudesse investir em descobrir novos arranjos e sons. Não foi estranho quando, em 2013, Reflektor deu um passo muito maior nesta direção que seu antecessor. E aí a unanimidade da Arcade Fire foi “pras cucuias”. O que pouca gente entende é que o talento do grupo é justamente transitar pelo universo musical pinçando tudo que lhes atiça a criatividade. Trata-se muito menos de que “o trabalho atual não foi feito para mim/não sou o público-alvo” e mais de que cada disco é a tradução de um momento da banda, e também de um momento da contemporaneidade. Guardadas todas as devidas proporções, quem também trilhou este caminho foi o camaleônico David Bowie.
Everything Now é uma crítica mordaz ao mundo contemporâneo, ao mal-estar que se espalha neste universo moderno. Para isso, optam por carregar o álbum com pop dançante à la ABBA, como em “Everything Now”, faixa homônima que abre o disco; o funk e a disco music dos anos 70 de “Signs of Life”; grooves e riffs do rock jamaicano em “Chemistry”; e até uma balada com “We Don’t Deserve Love”, uma das canções mais melancólicas da carreira da banda.
Dizer que Everything Now é o disco menos inspirado da banda é, ao fim e ao cabo, negar o discurso por trás das composições, que estão debruçadas, também, sobre uma crítica aos excessos dessa era da “internet das coisas”. “We’re infinitely content / All your money is already spent”, dizem em “Infinite_Content”; “We’re the bones under your feet / The white lie of American prosperity”, cantam em “Creature Comfort”, um olhar ácido sobre uma geração que deseja fama enquanto, no fundo, morrem angustiados e sentindo-se vazios.
O LP pode até não ser seu favorito na discografia do grupo (certamente não é o meu), mas segue o histórico do conjunto de mostrar-se inquieto e insatisfeito com o que já foi feito. Este é o combustível para qualquer grande artista, e não parece ser diferente para o Arcade Fire, cada vez mais camaleônico.
Ouça ‘Everything Now’ na íntegra no Spotify
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