Todas as noites, a partir de 1967, John Peel, o mais famoso DJ da Radio 1 (BBC), mudava a vida dos seus ouvintes. Tocasse o que fosse – canções que descobrira em suas buscas, as de cabeceira, sons da África, da Islândia, uma banda nova que ninguém ainda ouvira.
Nada passava despercebido pelo radar musical de Peel. Mas ele só tocava o que gostava. O que valia era o apreço e não o fato de conhecer o artista. Era a liberdade que a BBC sempre lhe dera. O amor de John Peel pela música o levou a ser considerada uma das pessoas fundamentais na vida de muitos músicos, não só ingleses, mas de outros cantos do mundo também.
Em 2009, durante um congresso sobre radiojornalismo, conheci o jornalista Lucio Mesquita. Na época, Mesquita era diretor regional da BBC West. Conversa vai, conversa vem, toquei no nome de John Peel. O jornalista me confirmou o que eu e tanta gente já sabíamos: “não existiu melhor DJ na BBC do que o Peel.”
E engana-se quem acha que Peel começou sua carreira na emissora britânica. Depois de alguns anos vivendo nos Estados Unidos, onde adquiriu experiência como locutor em três emissoras de rádio, no Texas e na Califórnia, Peel resolveu voltar para a Inglaterra. A aventura estava só começando.
Por seis meses, o radialista foi um pirata musical no sentido mais literal. Fundou a Radio London, emissora que funcionava em um barco na costa inglesa. Foi no mar que nasceu o John Peel e seu primeiro programa, o The Perfume Garden. A atração saía um pouco do padrão das rádios tradicionais da época, que preferiam tocar mais do pop – Peel mandava blues, punk, reggae, hip hop, progressivo, psicodelia e tudo mais que era novidade aos ouvidos dele. O horário de transmissão também era bem pirata – da meia noite às duas da manhã.
Ser convidado pelo DJ para uma sessão era o maior highlight que qualquer músico sonhava em ter.
Seis meses depois, Peel foi autuado. Fechou o barco e voltou a Londres procurar emprego. Bernie Andrews o convidou para trabalhar na BBC. Em 1º de setembro de 1967 o DJ estreava seu primeiro programa na Radio 1, o Top Gear. Peel começou a agendar gravações com artistas que ele achava que mereciam reconhecimento. Assim nasceu, dentro da programação do Top Gear, as Peel Sessions. Nem vou citar quanta gente passou por lá, mas dê uma olhada nesse arquivo imortal que a BBC mantém até hoje.
Na edição da NME de outubro de 2014, a revista reuniu depoimentos de algumas bandas favoritas de John Peel – Billy Bragg, The Slits, Interpol, Echo and the Bunnymen, The Wedding Present, Mogwai, Arab Strap, Belle and Sebastian, The Delgados e, claro, The Undertones.
O depoimento de Billy Bragg foi muito certeiro. Ele nos fez lembrar que na época de John Peel as pessoas descobriam a música pelo rádio. Não havia serviços de streaming que entregavam ao ouvinte um pacote personalizado, de acordo com o seu gosto musical, somente cruzando “informações”. Além disso, ser convidado pelo DJ para uma sessão era o maior highlight que qualquer músico poderia em ter.
O suporte de Peel, principalmente para os que estavam iniciando uma aventura na música, era fundamental. Para Stuart Murdoch, do Belle and Sebastian, o DJ era uma espécie de portal, alguém que abria um caminho para que pudessem alcançar o público e uma gravadora. A benção de Peel significa que podiam seguir em frente, pois se “John dizia que você era grande, então você era mesmo”, relembra Ian McCulloch.
Além da música, Peel tinha mais duas paixões – Sheila, com quem se casou em 1974, e o Liverpool FC. A admiração pelo clube era tão insana que no dia do casamento, em pleno Regent’s Park e com direito a Rod Stewart como padrinho, ele fez questão de usar um traje com as cores do time e ainda fazer sua entrada ao som de “We Never Walk Alone”, hino do Liverpool.
Vez ou outra, Peel inventava alguma para se ocupar ainda mais. Para fugir do espírito natalino, em 1976, resolveu criar o Festive 50, evento que aconteceria até o ano de sua morte. John pedia aos ouvintes que votassem em suas músicas favoritas daquele ano que estava por acabar.
A ideia dele com o Festive 50 era a de apresentar música diferente da que estava na parada britânica. Para não haver desconfiança, Peel anotava tudo em um livro e fazia a contagem a mão. Nada computado. Esse livro sagrado ficou sob a guarda do amigo de longa data, David Gedge, do The Wedding Present.
Em algumas edições, o DJ se irritou, se decepcionou com os ouvintes, pois o resultado da votação acabava caindo no popular, como em 1991, quando o vencedor foi “Smells Like Teen Spirit”, do Nirvana. Peel, rebelde que era, se recusou a tocar a música.
Quando Peel completou 50 anos, ganhou uma festa. The Fall e The Wedding Present fizeram uma jam session. Foi presenteado por Damian O’Neill, do The Undertones, com o rascunho original de “Teenage Kicks”, música que o locutor nunca escondeu ser uma das suas preferidas.
Em 25 de outubro de 2004, John e Sheila estavam de férias. Em Cuzco (Peru), um dos lugares mais mágicos da Terra, John sofreu uma parada cardíaca. Morreu ao lado da esposa. Em seu enterro, “Teenage Kicks” tocou seus ouvidos. No próximo dia 30, John Peel faria 81 anos. Não duvido que ainda estivesse na ativa. Mesmo que seu inglês esteja enferrujado, dê uma olhada no vídeo aí embaixo. Vai se emocionar de qualquer jeito, penso eu.
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