Lá no início de 2015, o Scalene ainda não era famoso. Apesar dos anos de carreira em Brasília, um EP (Cromático, ainda com Aléxia Fidalgo na formação) e um disco (o ótimo Real/Surreal) já lançados nas costas, a banda ainda transitava apenas no circuito underground e não era conhecida por muita gente fora dos núcleos garimpeiros de rock alternativo e fãs desavisados de Paramore que se enganavam pelos cabelos vermelhos da ex-vocalista. Até que, em maio daquele ano, tudo começou a mudar.
O Scalene participou do televisivo Superstar, da Rede Globo, e, pouco tempo depois da estreia na competição, lançou seu segundo álbum independente, Éter (leia aqui nossa crítica). Gustavo, Tomás, Lucas e Philipe ‘Makako’ chegaram a um programa famoso (que revelou a infeliz banda Malta um ano antes), apresentando um repertório autoral consistente e sem receio de levar barulheira pras noites domingueiras da família brasileira.
Aí o jogo virou: alternando baladas singelas com momentos de peso, o Scalene conquistou os três jurados – o improvável trio Paulo Ricardo, Thiaguinho e Sandy – e praticamente toda a audiência daquele horário, que votava em peso para a permanência dos brasilienses na disputa, da qual conquistaram o segundo lugar.
Éter foi relançado pelo selo SLAP, da Som Livre, e ganhou um Grammy Latino, na categoria Melhor Álbum de Rock em Língua Portuguesa do ano seguinte. Seguiram-se um LP e DVD ao vivo (Ao Vivo em Brasília, de 2016) e algumas dúvidas. O que eles fariam agora? Aproveitariam a fama e se renderiam ao pop radiofônico? Investiriam numa pegada ainda mais roqueira e torta?
A resposta chegou no último dia 18, com o lançamento de magnetite, o terceiro registro de estúdio do Scalene. E o disco é bom, viu?
Logo na primeira faixa, fica claro que quem apostou na primeira opção errou. “extremos pueris” é um stonerzão de riff pesado, que figuraria facilmente em Real/Surreal. Não é incrível, mas funciona quase como um resumo da carreira do Scalene: tem as guitarras, tem um instrumental bem trabalhado e linhas melódicas bonitas.
É na sequência, porém, que aparecem três faixas para começar a deixar as coisas mais interessantes. “ponta do anzol” ostenta um suingue novo para o grupo, dando a entender que o Scalene não está parado e preso às mesmas referências, mas disposto a buscar transformações. Depois, “cartão postal” chama a responsabilidade de ser a primeira balada do álbum e cumpre com louvor: a música é interessante e faz uso de bonitos timbres limpos de guitarra, palminhas e algo de space rock nos sintetizadores que auxiliam na ambientação da canção. E então “esc (caverna digital)” traz a primeira grande aparição de uma novidade importante para a banda: a brasilidade. Um groove meio baião na bateria e guitarrinhas nordestinas dão o tom da faixa, que desemboca em mais um stoner seco e finaliza trazendo de volta a frase que abre a música: “Ah, se eu pudesse tiraria você de mim”.
A partir daí, magnetite alterna ótimos momentos e outros um pouco menos inspirados. “distopia” – a primeira a virar clipe – por exemplo, é uma música legal, com um refrão grudento e um final meio sludge metal que daria orgulho aos americanos do ‘O Brother. Mas a letra é uma tentativa um pouco rasa de fazer crítica ao mercado das religiões enganadoras, que se aproveitam da fragilidade do povo para fazer dinheiro e disseminar o conservadorismo: “Homens de terno/Podres por dentro/E a Bíblia na mão/Pregam o ódio/Intolerância a cada sermão”, vocifera Gustavo, com uma raiva bem intencionada mas pueril (para emprestar o adjetivo usado no título da primeira canção).
magnetite pode não ter a juventude e crueza de Real/Surreal ou as arestas bem aparadas de Éter, mas é muito mais coeso que ambos.
Mas a impressão ruim da letra clichê passa logo, pois ao final da faixa encontramos uma conexão quase perfeita com a invocada “frenesi”, que entra com um riff rápido, passa por trechos que denotam uma possível influência de Animals as Leaders e traz até slaps de baixo, vindos de um Lucas quase sempre discreto.
Outro grande momento do álbum fica por conta de “fragmento”, que abre com um lick de guitarra torto e distorcido, chega novamente ao nordeste brasileiro e resvala no post-hardcore americano. Depois, mais uma surpresa interessante aparece em “trilha”, que tem pegada blueseira e alguma inspiração no som do Far From Alaska – amigos pessoais do Scalene. E se “heteronomia” caberia fácil em Éter, “phi” fecha o disco com uma power ballad quase épica, cheia de nuances e uma beleza tocante.
Em um apanhado geral, ao final da audição, magnetite derruba algumas impressões que eram comuns aos outros discos. Primeiro, sobre o vocal de Gustavo Bertoni, que está no auge pessoal até aqui. Se antes já era bom cantor, com belo timbre e facilidade em ir do grave profundo aos falsetes, o rapaz agora está mais seguro do que faz e – a grande diferença – se faz entender perfeitamente em português. E depois, sobre as influências: para mim, as referências do Scalene eram claras demais.
Algumas faixas eram puro Queens of the Stone Age, outras obviamente influenciadas por Thrice, e a banda ainda penava para encontrar sua cara própria. magnetite pode não ter a juventude e crueza de Real/Surreal ou as arestas bem aparadas de Éter, mas é muito mais coeso que ambos e mostra uma banda mais autoral do que antes, que consegue incorpora diferentes inspirações e as chama de suas.
Quem apostou em um mergulho no pop errou. Quem imaginava uma ruptura em direção ao peso torto, errou também. magnetite não é mais comercial nem mais pesado do que os dois lançamentos anteriores: é um passo em direção ao futuro.