Na trajetória de vida do compositor e escritor carioca Chico Buarque, Curitiba merece um breve, porém emblemático episódio, para quem busca tentar compreender como o filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda, em muito pouco tempo, se transformou de estudante de Arquitetura e Urbanismo em ídolo da canção popular, apenas um ano depois do início oficial de sua carreira musical, que tem como marco fundador a composição “Tem Mais Samba”, escrita em 1965.
Na manhã de 14 de novembro de 1966, uma segunda-feira, Chico, então com 22 anos, desembarcou no Aeroporto Afonso Pena, para um dia tão cheio que iria se estender até a madrugada. Sua popularidade tinha atingido a estratosfera depois de ele ter vencido, em outubro daquele ano, com a marcha lírica “A Banda”, o 2.º Festival de Música Popular Brasileira, exibido pela TV Record, em um empate histórico com a moda de viola “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, interpretada por Jair Rodrigues, falecido em 2014.
A canção, cujo compacto simples, gravado pela cantora capixaba Nara Leão, vendeu dezenas de milhares de cópias em pouquíssimo tempo, transformou Chico em mania nacional. O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade dedicou-lhe uma crônica, publicada pelo Correio da Manhã, e até mesmo o carrancudo dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues, para quem a unanimidade era invariavelmente burra, rendeu-se à singeleza poética da composição. O país, enfim, estava aos pés de Chico.
Na página 8 de sua edição de 15 de novembro daquele ano, a Gazeta do Povo trouxe reportagem, bastante rica em detalhes, sobre a passagem espetacular do compositor de olhos verdes pela capital paranaense no dia anterior. Intitulado “Toda cidade cantou a ‘banda’ com o autor e banda militar”, o texto, não assinado, conta que, “tímido, trajando roupas esporte – camisa quadriculada e calça ‘Lee’ de cor branca, um pouco amassada –, falando pouco e respondendo laconicamente as perguntas formuladas, Chico Buarque de Hollanda deu verdadeiro ‘show’ para o público curitibano na Rua Marechal Deodoro, quando cantou duas vezes sua consagrada composição ‘A Banda’.”
O artista veio a Curitiba a convite do então prefeito da cidade, Ivo Arzua Pereira (1925-2012), para inaugurar a Praça 29 de Março, um projeto do arquiteto Jaime Lerner.
O artista veio a Curitiba a convite do então prefeito da cidade, Ivo Arzua Pereira (1925-2012), para inaugurar a Praça 29 de Março, um projeto do arquiteto Jaime Lerner, que transformou uma área de 11 mil metros quadrados, no bairro Mercês, antes ocupado pelo antigo campo do Poti Esporte Clube, time que disputava a segunda divisão do futebol. Na cerimônia, o compositor recebeu a chave da cidade, em formato de pinheiro.
Após a inauguração, que aconteceu por volta das 17h30, Chico rumou para o Centro, onde 10 mil fãs pararam o trânsito na Marechal Deodoro, se acotovelando para vê-lo e ouvi-lo cantar por duas vezes seu grande sucesso, acompanhado pela Banda da Polícia do Militar.
A jornalista carioca Regina Zappa, autora de quatro livros sobre a vida e a carreira de Chico, afirma, sobre essa passagem de Chico por Curitiba, citada em uma de suas obras, a biografia ilustrada Para Seguir Minha Jornada – Chico Buarque (Nova Fronteira, 2011), que o compositor foi “recebido como um astronauta”, um herói nacional. “A partir de ‘A Banda’, tudo que ele fizesse era um acontecimento. Seus discos (fossem LPs ou compactos) vendiam muito, como os dos Beatles. As meninas, como eu, eram loucas por ele”. lembra Regina.
Clamor
O alvoroço com a presença de Chico no coração de Curitiba foi tanto que, em determinada altura, ele teve de ser conduzido ao prédio do banco Bradesco, na esquina das ruas Marechal e Monsenhor Celso, onde subiu até uma sacada, da qual ficou vendo a multidão, que permaneceu no local até 20 horas, diz a reportagem da Gazeta. Na confusão criada enquanto tentava chegar ao edifício, Chico chegou a perder “os cordões de seus sapatos”.
A revista semanal Manchete, em matéria publicada sobre a mesma visita, assinada pelo jornalista Elmir de Almeida Leite, conta que o clamor das fãs era tanto, que algumas conseguiram romper o cerco de proteção policial e tentaram “dele arrancar beijos e a camisa”. Além de um chumaço de cabelos.
Na ocasião, Chico recebeu uma placa como os dizeres: “Ao Chico Buarque – a homenagem da cidade, que também parou ‘para ver, ouvir e dar passagem’ a sua alegre banda”.
Dizia ainda o texto da Gazeta do Povo que, durante todo o tempo, o compositor carregava junto ao corpo o seu símbolo de sorte, o bonequinho de pano Mug, que ganhou aura de amuleto nas mãos de cantores como ele e Wilson Simonal (1939-2000) e virou febre por alguns meses em 1966, mas não rendeu um tostão sequer aos artistas. “O Chico morre de vergonha dessa história até hoje”, conta Regina Zappa.
Entrevista
Às 16h40 daquele mesmo dia, no Gran Hotel Moderno, na Rua XV de Novembro, onde ficou hospedado, Chico Buarque havia concedido entrevista à imprensa. Sobre “A Banda”, disse que a inspiração para compor a canção teria vindo de memórias de sua infância em São Paulo, onde morou perto de um terreno baldio. “Lá se apresentavam muitos circos e muitas bandas.”
O compositor afirmou, ainda, que sua composição não havia tomado o lugar do iê-iê-iê. “Não dou muito valor a ele”, disse ele, referindo-se ao ritmo popularizado pelos Beatles e outros artistas da época – “Mas não a considero música débil mental”.
A entrevista foi encerrada com Chico se descrevendo “como um compositor eclético”. “Aproveito Noel Rosa, de Vinicius de Moraes, [Dorival] Caymmi e outros. Do Juca Chaves, quase nada aproveito.”
Naquela noite, finaliza a reportagem da Gazeta, Chico Buarque inaugurou as novas instalações do Santa Mônica Clube de Campo, onde se apresentou em show iniciado “às 24 horas”, Já na manhã seguinte, partiu de volta a capital paulista. Aos 22 anos, ele tinha todo o fôlego do mundo.