É admirável o poder de evolução que carregam certos artistas. A capacidade de aglutinar novas ideias, ou mesmo de perceber que é necessário e/ou possível acrescer novas camadas à sua obra, é característica rara. Em partes, pela dificuldade em um artista admitir que dá para ser feito mais (ou que se fez pouco); em outros instantes, por uma arrogância por vezes intrínseca a esta pequena casta artística. Mas quando a fome encontra a vontade de comer, nos vemos diante da possibilidade única de admirar o surgimento de um símbolo representativo do artista evoluído.
As curitibanas da Cora vêm, sistematicamente, modificando sua própria essência ao longo dos últimos anos. Com um olhar muito caro à experimentação, elas procuram dar uma nova dimensão à sua própria musicalidade. Num jogo de espelhos, apresentam-se sob diferentes roupagens, infinitas representações e, ainda assim, uma mesma personalidade, que se esconde nas entrelinhas do DNA que define o grupo.
Kaíra e Katherine mergulham o ouvinte nesta piscina que por vezes evoca o dreampop, em outras uma experimentação da neo-psicodelia, do chillwave, do shoegaze, sem se esquecer de tangenciar tudo que passa por seus corações, mentes e ouvidos.
A Cora busca (e encontra) referencias até em si. Katherine Zander pinça detalhes de seu trabalho solo, Katze, e os insere em El Rapto, o primeiro álbum completo da banda. Entre o etéreo e o onírico, entre a multiplicidade da fala, expressa em diferentes idiomas, e o barulho do silêncio, o disco cava um espaço no cenário alternativo e independente (local e nacional) como um retrato sobre o íntimo, o reflexo do eu no outro e a incompletude humana.
Kaíra e Katherine mergulham o ouvinte nesta piscina que por vezes evoca o dreampop, em outras uma experimentação da neo-psicodelia, do chillwave, do shoegaze, sem se esquecer de tangenciar tudo que passa por seus corações, mentes e ouvidos. Há ecos de The XX, Hole, mas também de Beach House, Cocteau Twins e This Mortal Coil. Contudo, é evidente que a maior presença é da própria dupla, que na maior verve modernista não foge de se aglutinar, mastigar, buscar neste jogo de espelhos o reflexo de outros “eus” que residem em si. E é esse olhar, essa capacidade de encontrar em si (além do outro) o ponto de partida para trazer ao público uma banda ainda melhor, que, provavelmente, seja a maior marca de El Rapto e a grande contribuição dele para a cena local.
O resultado desta atitude tão madura e corajosa é um disco que consegue a singular capacidade de se apresentar sempre em alto nível. A amplitude rítmica entre as faixas é tão baixa, que invariavelmente joga o ouvinte em uma introspecção de pertencimento e autoconhecimento, só possível nesta viagem desbravadora e plena para um universo paralelo que, na realidade, são vários, dependendo do seu estado de espírito.
El Rapto arrebata por tudo o que é visível em suas camadas mais superficiais, e nos toma por completo pela certeza de que é preciso esmiúçá-lo para tirar dele o invisível aos olhos. Existem tantos discos dentro deste álbum, que só é possível afirmar ao leitor que, provavelmente, você encontrará um outro para chamar de seu ao ouvi-lo. E aí, neste momento, entenderá o tal jogo de espelhos.