Momentos tempestivos costumam ser fermento para a cultura, em especial para a música. É nas estrofes, notas e arranjos que artistas escrevem e traduzem as palavras que parecem insistir em ficar presas nas gargantas secas pela fumaça que escurece e tapa a visão de nós todos. O ano de 2017 começou arrastado para a cultura curitibana.
A nova gestão cortou verbas, gritou e fez demagogia para quem quisesse ver. Enquanto isso, um grupo formado apenas por mulheres, vindas de diferentes partes do país, mas unidas por um mesmo ideal, coloca a cena pouco a pouco em ebulição. A Mulamba já atravessou seu primeiro ano, uma marca que, apesar de parecer pequena, é ultrapassada por número ainda reduzido de artistas nas cenas regionais brasileiras, um índice ainda menor entre grupos prioritariamente femininos.
A marca torna-se ainda mais representativa quando analisamos os números da indústria da música no Brasil. Em 2015, das 100 músicas mais executadas no país, apenas 15 eram interpretadas por mulheres, segundo dados da Crowley. Em 2016, este número saltou para 21, mas ainda é pouco para uma cadeia produtiva que é majoritariamente masculina, onde faltam críticas, produtoras, engenheiras de som e roadies, por exemplo.
“A Mulamba é uma banda feminista que aborda diversos assuntos. Tanto em sentimento quanto em posicionamento, a banda fala sobre ser mulher, viver como mulher e entender o mundo sendo uma mulher”, conta Naíra Debértolis, baixista da banda, em entrevista concedida na última semana. E se movimentos e artistas ganham importância pelo discurso que carregam, a Mulamba procura fazer eco justamente através de uma representação mais justa, honesta e correta da mulher e sobre seu papel no mundo. “Queremos representar a mulher em forma de música, poesia, protesto, atitude. Queremos mudar a visão machista do mundo”, completa Naíra.

‘Tanto em sentimento quanto em posicionamento, a banda fala sobre ser mulher, viver como mulher e entender o mundo sendo uma mulher.’
Não é possível dissociar cultura de política, e a existência de personagens como a banda Mulamba ganha particular importância como luta política no contexto brasileiro. Embora avanços sutis tenham sido alcançados, o país tem uma taxa de 4,8 homicídios a cada 100 mil mulheres, a quinta maior do mundo em um ranking com 83 países, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Dados do Mapa da Violência de 2015 mostraram que entre 2003 e 2013, o número de vítimas de homicídio do sexo feminino aumentou 21%, atingindo a marca de 4.762 mulheres mortas. Dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) apontaram que o Brasil registra um ato de violência contra mulheres a cada 7 minutos, e que destes registros, quase metade (49,82%) corresponde a denúncias de violência física e 58,55% foram relatos de violência contra mulheres negras.
A indústria da música é um microcosmo desse ambiente hostil às mulheres. Recentemente, o ex-empresário da cantora canadense Alanis Morissette admitiu ter roubado a cantora. A norte-americana Kesha perdeu na justiça o direito de se ver livre de seu produtor e empresário Dr. Luke, a quem inúmeras denúncias de abuso e estupro já foram imputadas. No Brasil, Joelma, Elza Soares, Karol Conka… uma simples pesquisa com os termos “cantora” e “violência” revela histórias assustadoras. “Ainda existe muito receio por parte da mulher para se aprofundar nessa área. O meio musical tem 70% de presença masculina, pois a mulher ainda se sente bastante inferior”, comenta Naíra.
Procurando mudar esse cenário, a Mulamba trabalha seus ideias não apenas nas letras de canções, mas também na postura e forma de trabalho, mantendo sua equipe de apoio toda formada por mulheres. “Acreditamos que dessa forma mostramos – e provamos – que uma mulher é, sim, capaz de executar qualquer tarefa”, afirma a baixista da banda. “Música é manifesto. Assim como colocam na rua letras que diminuem a mulher, nós a empoderamos”, complementa.
O grupo, que pulou de um projeto formado para um especial de Cássia Eller para um de música autoral, usou 2016 para amadurecer, escrevendo e projetando o primeiro EP, que deve sair ainda este semestre. Nesta união de essências e referências distintas das integrantes da banda – a saber: Amanda Pacífico, Cacau de Sá, Caro Pisco, Fer Koppe, Naíra Debértolis e Nat Fragoso, que participam de outras iniciativas da cidade como a Orquestra Friorenta, a Watch Out for the Hounds e Farrapo’só –, a Mulamba quer “ser a voz de muitas mulheres que se calam por se sentirem inferiores aos homens”. Singles como “Mulamba” e “P.U.T.A” servem como ponto de partida para entender a proposta do grupo e saber o que esperar do futuro do sexteto.
Nesta Curitiba “cheia de bandas e cantoras talentosas”, como Naíra diz em nosso papo, é prazeroso ver uma efervescência capaz de modificar realidades. Talvez, nunca tenha sido tão importante como agora.
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