Meu primeiro contato com o rap e o movimento hip hop se deu em 1996. Por intermédio de uma de minhas irmãs, chegava até mim uma fita cassete branca da BASF. Nela, em um dos lados, Raio X Brasil (1993) completo e versões ao vivo de algumas faixas de Holocausto Urbano (1990), ambos discos dos Racionais MC’s. Do outro, Enchergue Seus Próprios Erros (1995) – nome do disco foi grafado na capa propositalmente com erro gramatical – que, entre as 11 faixas, continha a histórica “Tá na hora”.
Poucos gêneros musicais eram capazes de retratar o contexto político e econômico do Brasil, e menos ainda quando o foco era a periferia e as minorias. Era um cenário fértil para o surgimento de vários grupos, artistas e MC’s, com maior força em São Paulo, mas também acontecendo em outras cidades do país. GOG e Câmbio Negro em Brasília e MV Bill e Gabriel, O Pensador no Rio de Janeiro se juntavam aos grupos que na capital e interior paulista já conquistavam seu público. Racionais MC’s, Consciência Humana, Thayde e DJ Hum, Facção Central, Face da Morte e Sistema Negro eram apenas alguns dos nomes que passavam a ocupar algumas rádios FM’s.
Nesse contexto, o exemplo mais significativo foi o programa Espaço Rap, da Rádio 105 FM de São Paulo. Foi um dos primeiros espaços que o rap nacional obteve em uma emissora comercial, já na década de 1990, na “esteira” do sucesso dos Racionais MC’s. O programa, que inicialmente tinha meia hora de duração diária, hoje representa 6 horas da programação da emissora.
Uma geração inteira cresceu tendo como base os artistas citados acima. Este é o caso de Gustavo Correa, o Cadelis MC. Ex-integrante dos grupos Agamenon, do qual também fazia parte Karol Conka, e Boa Praça, ambos de Curitiba, o rapper lançou no último dia 11 deste mês seu primeiro trabalho solo, Sob a Tempestade. Produzido pelo beatmaker e produtor musical Dario, o álbum com 11 faixas apresenta um músico repleto de camadas de referências, grandes doses de lirismo e batidas e scratchs muito bem elaborados.
Há muitos elementos contemporâneos em seu rap, o que torna seu trabalho um recorte do cotidiano curitibano atual.
As linhas melódicas e líricas de Cadelis MC evidenciam suas influências da golden era – nome como é conhecido o período iniciado na década de 1980, com fortes elementos experimentais e temáticas políticas, sendo um dos maiores expoentes deste período o Public Enemy – e da boombap – um estilo dentro do hip hop, conhecido pela batida forte do bumbo marcando o ritmo. Entretanto, isso não significa que o som do músico é completamente old school. Há muitos elementos contemporâneos em seu rap, o que torna seu trabalho um recorte do cotidiano curitibano atual. É verdade, porém, que em alguns momentos, por soar tão cosmopolita, o disco tenha um ar mais paulista do que paranaense. Claro que este detalhe em nada prejudica o conjunto da obra, já que, como cantado pelos Racionais MC’s, “periferia é periferia em qualquer lugar”.
A parceria de Cadelis MC com DJ Morenno também é digna de menção. Sob a Tempestade é um disco muito bem produzido, o que não era de se estranhar. O movimento hip hop em Curitiba possui muita força. A união entre os artistas e destes com seu público é exemplo para toda cena musical paranaense, independente do gênero. DJ Primo, Nairobi MC, MC Cipó, Cilho, Savave, e mais recentemente, Karol Conka e Cabes MC, são apenas alguns dos nomes representativos do circuito. Como já citado em análise feita pela colega Anna Carolina Azevedo (O que quer Cabes MC?), essa efervescência garante ao hip hop o título de principal linguagem artístico-cultural da capital paranaense.
As temáticas do disco percorrem a noite underground de Curitiba (“Caminhos Diferentes”), analogias com o aquecimento global e os desastres naturais (“Caos no Laos”) e os conflitos internos como de qualquer ser humano (“Sob a Tempestade”). Há espaço ainda para Cadelis MC falar sobre as urgências humanas dos tempos modernos (“Tempo Perdido”) e para dividir o microfone com Janine Mathias e Savave.
A melhor sugestão que posso dar ao leitor é que você esqueça qualquer pré-conceito ou preconceito, e vá conferir o hip hop feito na cidade nos inúmeros eventos realizados semana após semana. A convergência entre a periferia e o centro, entre o rap e outros gêneros musicais, é o que nos engrandece e enriquece, não apenas culturalmente, mas enquanto conscientes de que nossa cultura reflete nossa sociedade e vice versa.