No final dos anos 80, enquanto o mundo da música via o grunge estourar os tímpanos e mentes da juventude e o hard rock dar seus últimos e verdadeiros suspiros com o Guns and Roses, a música eletrônica procurava novas brechas e, consequentemente, novas formas de dar um upgrade em sua sonoridade.
Foi assim especialmente na Inglaterra, particularmente em Bristol, onde um grupo de DJs e músicos começaram a fazer uma música eletrônica mais experimental, agregando elementos do acid house, soul, funk e jazz em uma fusão com hip hop. Surgia então o trip hop. A parte “trip” do gênero está intimamente ligado com o fato dos sons serem uma “viagem musical”.
Com o passar dos anos, o dub, o R&B e o house começaram a ser acrescentados e os sons ganharam ainda mais um tom experimental. Marcado pelo uso de sintetizadores, samplers, baixos com distorção, percussão, teclados e guitarras, o trip hop passou, a partir do início dos anos 90, das casas noturnas para os palcos de grandes casas de shows.
Em 1991, o Massive Attack lançou Blue Lines, seu primeiro álbum, atingindo enorme sucesso e ganhando toda a Europa com sua sonoridade nada convencional. Dois anos depois, Björk lançou Debut, seu segundo trabalho, (quase 20 anos após Björk), inspirado pelo novo gênero, e o trip hop caiu de vez nas graças do público, chegando ao mainstream.
No caso brasileiro, o mais próximo que chagamos de fazer algo semelhante foi com o manguebeat. No Brasil, tivemos algumas tentativas de criar algo próximo do trip hop “original”, como o músico Jan Felipe, um carioca criado na França que juntou suas músicas com seu talento para manipulação de áudio.
Mas, fora isso e alguns projetos tão independentes que não chegaram ao grande público, não vimos um grupo brasileiro de trip hop. Aliás, não tínhamos visto, até a joseense Salve as Kamadas Líricas aparecer.
Gabriel Salve, Lígia Kamada e Marcelo Lira mergulharam no trip hop como quem mergulha no vasto mar procurando entrar em contato com a essência da vida através da água. Havia, como sempre há quando o caminho trilhado subverte as referências em voga, o risco de soar extremamente experimental. Não que isso não ocorra com a Salve as Kamadas Líricas, mas o trio parece ter acertado a medida entre influências, visões de mundo, arte e experimentação, de forma que soam originais, universais e inspiradores.
O trio parece ter acertado a medida entre influências, visões de mundo, arte e experimentação, de forma que soam originais, universais e inspiradores.
Canções Que Voam, EP com 7 faixas, é um passeio por músicas que gritam uma necessidade latente de voltar os olhos para nossa essência humana, de forma a enxergar o que realmente importa no dia a dia.
Com muito groove, ginga e referências bem brasileiras, a Salve as Kamadas Líricas compartilha versos simples, que arrancam qualquer um de sua zona de conforto ao escancararem a obviedade da escuridão que assola o cotidiano de grandes cidades.
O experimentalismo de “Maina”, seus riffs, sintetizadores, djambê e vocais levam o ouvinte a um Brasil que por vezes o concreto (e nós mesmos) nos faz esquecer.
A faixa “Tá” é de uma singularidade no cenário da música brasileira, considerando não apenas o independente, que assume o posto de melhor canção do EP. A música inicia com trechos de um antigo documentário sobre São José dos Campos, cidade da banda, e já dá indícios de que vem algo diferente por aí.
“Era uma vez uma instância no Vale do Paraíba, que tinha tudo para ser uma grande cidade. Precisava somente que os homens tomassem consciência de seu fabuloso potencial, mas não se esquecessem de continuar amando e respeitando seu próximo”, diz o trecho inicial do documentário, antes de encerrar com: “207 anos passaram pelo tempo, numa corrida na qual a comunidade foi vencedora.” Será que fomos realmente vencedores, questionam os músicos ao longo da canção.
“No centro de tudo está você”, canta o trio, seguidos pelo refrão “você se doa ou você se dói, você destoa ou você destrói, você diz tá, diz tudo bem, diz bora lá ou diz amém.” Ao mexer, mesmo que despretensiosamente, com nosso comodismo, a Salve as Kamadas Líricas traz à luz o importantíssimo debate: o que você faz por um “nós” melhor a partir de um “eu” consciente de seu papel no mundo? Em tempos que as canções parecem tão efêmeras e vazias, a banda deixa a provocação para que saibamos que precisamos encontrar uma resposta. Até lá, ouça Canções Que Voam na íntegra.
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