Se a música pudesse ter seus efeitos traduzidos em um grande e absoluto poder, esse poder seria o de nos fazer viajar profundamente. Mas há artistas e bandas que levam esse poder tão a sério que investem pesado nos mais variados recursos para que nós, ouvintes, façamos uma boa e prazerosa viagem através das ondas sonoras.
No México, a banda Sonido Gallo Negro (quase uma pequena orquestra) tem desempenhado muito bem esse papel. Há mais de sete anos, construíram um universo bastante próprio a partir da junção de elementos resgatados nas culturas andinas da América do Sul, especialmente a cumbia peruana psicodélica dos anos 60 e 70, com distorções de guitarra, um pouco de radiofonia e bons toques de teremim.
A experiência sonora proposta pela banda, cujos integrantes provém de outros projetos musicais ligados à surf music, garage, rock psicodélico, entre outros estilos, é complementada com a produção estética impecável do ilustrador e designer Jorge Alderete, fator que certamente os diferencia de qualquer outra banda que produz releituras modernas de antigas canções tropicais.
Conhecido como Dr. Alderete, é ele quem casa a música instrumental lisérgica do Sonido Gallo Negro com uma identidade visual mística, quase esotérica. Responsável pelas capas dos álbuns, ele também faz performances de ilustração ao vivo durante os shows da banda utilizando um Tagtool, sistema de software e hardware livre que ajuda a realizar suas performances visuais em tempo real. Como um instrumento musical, o Tagtool funciona de maneira intuitiva, fazendo uma perfeita integração entre imagem e música. O público presencia tudo isso ao vivo, nos telões do palco, enquanto a banda faz seu show.
Na semana passada, uma caminhada pelo boêmio bairro Roma, na Cidade do México, me levou a conhecer um dos integrantes dessa grande engrenagem musical e visual. Na Galeria Vertigo, espaço dedicado ao design e à arte contemporânea, conversei com Israel Martínez, baixista do Sonido Gallo Negro. Israel me contou sobre o próximo disco da banda, Mambo Cósmico, que já tem previsão de lançamento para o início de dezembro, y otras cositas más. A entrevista completa você confere abaixo:
A Escotilha » Desde meados de 2012, SGN toca em algumas festas no Sul e Sudeste do Brasil, e também em programas de rádio especializados em música latina contemporânea e independente. Quando a banda começou na Cidade do México, havia uma perspectiva de rompimento de fronteiras tão grande?
Israel Martínez » É uma grande e nova notícia estarmos sendo ouvidos no Brasil, um país que amamos por seu patrimônio musical e só tivemos uma oportunidade de visitá-lo, na Virada Cultural de São Paulo (em 2015).
Acredito que na realidade nunca pretendemos muito com Sonido Gallo Negro, portanto agora quase tudo o que acontece com a banda é surpreendente para nós e aproveitamos muito. É incrível pensar em todos os países e cidades que visitamos, realmente surreal. Quando começamos só queríamos desconectarmos do rock e comprovar que podíamos tocar outros gêneros. Agora tudo o que vem é lucro.
É bem comum ouvirmos a classificação “world music” para gêneros que não se enquadram facilmente dentro dos rótulos mais convencionais na perspectiva da indústria fonográfica norte-americana e também britânica. O que você percebe sobre essa generalização de estilos musicais que possuem elementos regionais ou étnicos sob o selo “world music”?
A verdade é que nunca demos muita atenção a como vão classificar nossa banda. Existe todo um mundo de percepções acerca do que tocamos, e cada um interpreta nosso som como particularmente o convém, e gostamos desse poder de diversidade dentro do SGN.
Ano passado, por exemplo, fizemos um show no Down The Rabbit Hole (festival de música na Holanda) e todos dançavam como se estivessem em uma rave de música techno. Esse ano tocamos no encerramento do Jazz Sous le Pommiers, na França. De certa forma, contribuímos com esse caos de coisas inclassificáveis, especialmente nas apresentações ao vivo.
Nos três primeiros discos da banda há uma grande marca da cumbia peruana, principalmente da chicha. Quais são as diferenças da cumbia feita no Peru e no México?
A música peruana foi distorcida e transformada no México graças aos *sonideros, que passaram a baixar as batidas originais para fazer as músicas mais dançáveis e muitas vezes mudam até o nome das canções para que outros sonideros não as roubem. Isso fez da cumbia sonidera mexicana algo novo e particular, e tentamos traduzi-la nos primeiros álbuns.
Eu acho que o que faz do Sonido Gallo Negro não ser uma banda de música tropical convencional é nossa atitude.
Estamos muito interessados em como se interpretou essa cumbia no México e também em muita música que foi produzida nos mesmos anos, como o mambo e o danzón. Acho que a melhor forma que tenho para descrever todos esses gêneros é nostalgia. Marcaram nossa infância e sempre foram presentes no nosso dia a dia.
*NR. Sonideros, uma variação de DJ, são pessoas conhecidas por agitar festas populares no México, muitas vezes na rua, com playlists de cumbia, mambo e danzón. Os sonideros produzem uma série de intervenções nas músicas, usando microfones para transmitir mensagens, saudações e frases repetitivas, quase como um programa de rádio ao vivo.
Quando a cumbia peruana se funde à psicodelia? E quando a cumbia psicodélica flerta com o rock?
Pra gente foi um grande achado conseguir as versões originais de Los Mirlos e Juaneco y su Combo, por exemplo, que tinham uma enorme influência do rock psicodélico e muitas das canções eram instrumentais, e não nos foi difícil nos relacionarmos com esse som (tendo em vista que viemos do rock).
Eu acho que o que faz do Sonido Gallo Negro não ser uma banda de música tropical convencional é nossa atitude. A maior parte dos integrantes do SGN já vinha de outros grupos com os quais colaboramos, bandas de surf music, punk rock, garage, psicodelia. Nos aventurar pela cumbia psicodélica foi um novo desafio, tivemos que tentar.
No Brasil, ritmos latinos populares como a cumbia nunca tiveram muito espaço, exceto nas fronteiras com outros países na região amazônica, principalmente. Hoje, muitas pessoas estão consumindo partes dessa cultura musical. Como vocês encaram essa ampliação e renovação de público?
Nós adoramos. Sempre acreditamos que essa mudança se deve ao tédio que o público do rock tem com o próprio rock e que nós mesmos temos. Na nossa percepção, a atitude que cabe ao rock sempre falou sobre romper barreiras mentais e convencionais, e já não nos faz mais sentirmos desse jeito.
Tocar um gênero que teve sua essência esquecida pela nossa geração e dar a ele uma nova cara nos trouxe muito sentido para continuar tocando e fazendo shows. Como sempre, o problema não é o gênero, mas a recusa na oportunidade de conhecer outras coisas. Nesse sentido acho que estamos no caminho certo.
SGN é uma banda especial não só por reunir músicos muito competentes, mas também por terem uma proposta estética hipnotizante, lisérgica. Ao vivo tem performances visuais do Dr. Alderete usando o Tagtool. É possível dizer que nenhum show é igual ao outro?
Jamais serão iguais. O Tagtool não permite gravar, por isso cada show é único visualmente. Você nunca verá o mesmo em outro show. Trabalhamos muito tempo com Dr. Alderete em outros projetos, e ele foi responsável por várias capas de nossos discos com outras bandas. SGN é o primeiro projeto no qual ele é um integrante não apenas visual, mas também musical, já que toca teremim. Também, claro, cuida da parte estética da banda e a deu uma estética bastante particular.
Há vários anos usamos máscaras, inicialmente máscaras tradicionais mexicanas e agora máscaras desenhadas por Alderete. Gostamos que a experiência dos shows seja não apenas no musical, gostamos das bandas preocupadas com o que são. Por que não ser assim?
Em dezembro estreia Mambo Cósmico, quarto disco do Sonido Gallo Negro, sendo o terceiro com material original. Nesse novo trabalho vocês se aproximam muito mais de ritmos afro-caribenhos em comparação com a sonoridade andina marcante dos discos anteriores. O que o público pode esperar de Mambo Cósmico?
Acredito que podem esperar pelo disco mais pensado da banda. Imergimos da maneira mais respeitosa possível, mas com um olhar muito próprio do Sonido Gallo Negro em coisas como o mambo, o danzón e o porro, para dar um verdadeira reviravolta na banda.
Teria sido muito mais fácil fazer o que havíamos feito em outros discos, mas somos pessoas que se cansam facilmente das coisas, precisávamos tentar coisas novas e para isso tínhamos que saber tocá-las de verdade. Nós testamos esse disco quase por completo ao vivo, em ensaios no estúdio ou em shows pelas turnês, o nos fez tocá-las nas gravações mais seguros e contundentes. Bom, pelo menos é o que sentimos! (risos).
Há sonoridades ainda não exploradas que vocês gostariam de explorar?
Tem um milhão de coisas, mas vamos por partes! Temos outros projetos musicais (Twin Tones, Espectroplasma e outros) com os quais seguimos explorando ritmos e instrumentos totalmente diferentes do Sonido Gallo Negro.
Para o Gallo Negro ainda não temos claro o que virá, já que recém terminamos Mambo Cósmico, mas sempre estamos em busca de reviravoltas tanto para os discos quanto para os shows ao vivo.