Em 20 de outubro de 1992, uma bomba explodia na cultura pop. Uma estrela da música batizada com o nome sagrado da mãe de Jesus Cristo soltava um disco nomeado de forma profana. Erotica é o nome provocador do álbum lançado por Madonna três anos depois de seu bem-sucedido LP Like a Prayer, de 1989, em que já construía uma carreira baseada na polêmica e na tensão de estar sempre à beira dos limites do que uma artista mundialmente conhecida poderia fazer.
Só que esses limites foram ultrapassados em 1992, com este disco icônico que mistura gêneros dançantes com letras densas e lascivas como poucas vezes foram vistas antes (próximo a isso, citaria, talvez, o que Prince estava fazendo em 1980 em seu disco Dirty Mind). Mas Madonna – que agora tinha controle total de sua carreira, pois havia fundado o selo musical Maverick Records – estava vindo para escandalizar. Um dia depois do lançamento do Erotica, ela solta o livro Sex, com textos e fotos que prometiam materializar todas as suas fantasias sexuais.
Mas voltemos a Erotica, este disco que marcou um ponto de virada na carreira de uma diva do pop, que agora pisava em terrenos mais sombrios, musicalmente falando, mas também se colocava como uma espécie de emissária daquilo que se carrega nos recônditos dos desejos dos conservadores. Se sexo vende, já estava mais do que na hora de uma mulher empoderar-se dele – tanto para lucrar quanto para se satisfazer em cada um dos seus anseios.
O resultado é um disco multifacetado, e que reflete com justiça o seu contexto na época. Em 1992, vivia-se o auge na crise explodida pela Aids. Madonna, já um nome muitíssimo associado à comunidade LGBTQIA+, viu alguns de seus amigos adoecerem e morrerem da doença – que, para muitos, era decodificada como uma espécie de punição divina às pessoas (especialmente homens homossexuais) “entregues” ao hedonismo.
‘Erotica’: um disco de resistência feminista
Por isso, há um certo ato de resistência quando uma mulher lança um disco dançante, mas que convida todo mundo a celebrar uma vida regada a noitadas e a excessos, em um momento histórico (como tantos, como agora) em que tudo que é associado à lascívia é visto como algo que precisa ser extirpado.
Pois bem: em 1992, Madonna lançou um disco cuja música-título provoca o ouvinte com uma dose de sadomasoquismo: “apenas aquele que o machuca consegue fazê-lo se sentir melhor / apenas aquele que inflige dor consegue tirá-la”. No videoclipe, Madonna se veste de dominatrix com roupa de couro e dente de ouro.
Há um certo ato de resistência quando uma mulher lança um disco dançante que convida todo mundo a celebrar uma vida regrada a noitadas e a excessos.
“Erotica”, a música, já dá o tom do que viria a seguir. Ela soa inicialmente como um LP arranhado (uma nota pessoal: pedi este disco ao meu pai, quando tinha então onze anos. Fomos em uma loja comprar. Quando retornamos para a casa, ouvimos o disco, que parecia estar riscado. Voltamos à loja para trocá-lo, só para descobrir que estava escrito no encarte que os ruídos na música eram intencionais), e é soturna e misteriosa tal como imaginamos que a trilha sonora de um ambiente BDSM deve ser.
Mas há uma espécie de truque: ela abre espaço para que a faixa seguinte seja uma música extremamente para cima, a regravação disco do clássico do jazz “Fever”, imortalizado na voz de Ella Fitzgerald.
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Mas há, talvez de maneira proposital, algo que nos induz ao engano. As músicas para cima como “Deeper and Deeper” (certamente, uma das canções mais dançantes já produzidas na história da música) carregam mensagens ocultas, não foram feitas apenas para animar as pistas. “Deeper and Deeper”, por exemplo, foi decodificada por muitos como a história de um homem que assume sua homossexualidade (diz a letra: “deixei meu pai me moldar/ este sentimento dentro de mim / não sei explicar/ mas meu amor está vivo e nunca mais vou escondê-lo de novo”).
Talvez seja justo dizer que Madonna dialoga em Erotica com seus principais públicos durante todo o disco: mulheres e homens gays. E a ótica feminina (e feminista) está explícita em pequenas pérolas menos conhecidas do disco, como “Where Life Begins”, que claramente fala sobre sexo oral feminino. Nela, Madonna sussurra uma letra provocante que diz “todos estão falando sobre querer isso e precisar daquilo/ e eu só queria saber se você gostaria de aprender um diferente tipo de beijo/ você não quer descer/ onde é quente por dentro/ onde a vida começa?”.
Entre o fetiche e as baladas
A ótica feminina segue nas músicas seguintes. A baladinha “Bad Girl” traz aquele contexto walk of shame, com uma mulher aparentemente de ressaca questionando suas decisões. Flertando com o rhythm and blues, em “Waiting”, Madonna reclama do homem que só a decepciona. Na eletrônica “Thief of Hearts”, ela acusa outra, de forma bem humorada por ter roubado seu namorado. Há ainda tempo para adentrar no rap com “Did You Do It?”, gravada com os rappers Mark Goodman e Dave Murphy.
A onda começa a baixar e (ironicamente) o sol se abre com “Rain”, que soa como um arco-íris que se prenuncia depois de um disco denso. Contudo, Madonna não larga mão do objetivo de Erotica – que é o de desacomodar, incomodar – e dedica a triste In This Life para dois de seus amigos que morreram de Aids: Martin Burgoyne, seu primeiro empresário, e Christopher Flynn, seu primeiro professor de balé e o primeiro homem gay com quem conviveu.
Erotica se encerra com uma “Secret Garden” algo psicodélica, e deixa claro: aquela Madonna diva do pop estava procurando caminhos mais conturbados para trilhar. Trinta anos depois, em tempos sombrios e conservadores como o nosso, Erotica continua atual e pulsa vibrante.
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