“O eu é um outro”. A famosa frase da mais famosa carta de Artur Rimbaud ainda cala fundo quando pronunciada ao vento. O poeta precoce, que feito cometa cruzou o horizonte da poesia moderna e desapareceu no infinito de todos nós, continua se debatendo contra as molduras do teto de nosso desespero, arrastando as asas na sombra da noite, ateando fogo aos olhos da humanidade, ardendo feito um bom trago de absinto que aplaca a tremedeira matinal numa manhã de embriaguez. Sim, Rimbaud ainda atormenta, no entanto, a busca pelo outro não é exclusividade do anjo exilado francês. Por qualquer ângulo que se olhe, a “caçada” humana confunde-se com a busca pelo outro, por mais que tentemos negar tal afirmação na esperança de parecermos livres, bem resolvidos e independentes.
A verdade é que o ser humano é um bicho atormentado, e todos aqueles que vivem nesse estado permanente de desassossego sabem que a solidão rói, devora como cantou mestre Alceu, e maltratada demais a alma. A solidão é uma febre necessária, causadora de iluminações tremendas, mas precisa ser ministrada de maneira responsável, em doses homeopáticas e constantes; caso contrário, pode causar um descompasso tremendo dentro do peito. Sem saber, ou bem sabendo, o maestro Tom Jobim declarou uma das poucas verdades universais de nosso tempo: é impossível ser feliz sozinho.
Ao total foram recebidas quase 500 inscrições na convocatória de seleção de espetáculos. São peças vindas de 11 estados, de todas as regiões do país e algumas internacionais.
Tudo bem, talvez não seja lá tão impossível ser feliz sozinho, mas que deve ser chato, isso deve. Hoje, o mundo corre no caminho oposto do outro. Vivemos o tempo das selfies, da lista virtual onde acumulamos amigos que nunca veremos, do toque frio e impreciso em uma gélida tela de cristal líquido, do amor por câmeras, do abraço via teclado. Do sentimento requentado. A existência consumida pelos compromissos do mercado de trabalho afasta-nos sistemática e propositalmente, do outro; e sabemos que admitir a existência do outro pressupõe contato, toque, por isso creio que de todas as artes imagináveis e inventadas, e estarão por aí os “etiquetadores do Facebook” para discutir e avalizar muito bem o que é ou não arte (vide a chatíssima e desnecessária discussão a respeito da pichação), as artes cênicas figurariam sem sombra de dúvidas naquelas onde a “ferramenta” indispensável é ele: o outro.
É impossível fazer teatro sozinho, e digo isso enquanto um homem que sabe a importância da solidão, e a consome com todo o exagero que lhe é natural. Teatro é, sem sombra de dúvidas, uma arte de encontros; embora ainda haja tantos desencontros pelas coxias. E com a crença no encontro, e reconhecendo que esse encontro nem sempre se dá da maneira como deveria, saúdo a temática proposta pelo 13º Feverestival: “encontros em cantos”. Serão 13 dias de programação, instigada pela temática proposta, que irá dialogar com a cidade, seus diversos locais e públicos e criar oportunidades de reflexão e questionamento, segundo a organização. Ao total foram recebidas quase 500 inscrições na convocatória de seleção de espetáculos. São peças vindas de 11 estados, de todas as regiões do país e algumas internacionais.
A equipe de curadoria, responsável por analisar e selecionar os inscritos, é composta por Pedro de Freitas (Périplo Produções), Renato Ferracini (LUME teatro), Valmir Santos (Teatrojornal), Thiago Aoki (Sesc Campinas) e Cynthia Margareth (Núcleo Feverestival). Para esse ano foram selecionados 8 espetáculos, contemplando as categorias espetáculo adulto, espetáculo infantil e espetáculo de rua. A programação completa, aliás, está pegando fogo! Serão mais de 50 ações entre espetáculos, atividades formativas e intervenção literária; participarão do Feverestival grupos de diversas regiões do Brasil, cada qual com estéticas e propostas próprias. Além disso, todas as noites haverá uma opção de “ponto de encontro”, reforçando a possibilidade de encontros e trocas que um evento desse porte e qualidade oferece.
É claro que um festival é composto de altos e baixos. Impossível construir, na base da paixão e com pouco apoio, como tudo o que envolve o teatro no Brasil, um evento com esse volume de ações e esperar que tudo esteja absolutamente perfeito. Com o Feverestival não poderia ser diferente: se por um lado, podemos dizer que o “II Fórum de Festivais de Teatro no Brasil – Modos de Existência e Resistência” é uma preciosidade na programação, afinal, além da temática urgente nesses tempos sombrios o fórum contará com a presença de diretores e diretoras de festivais do país e da América Latina, por outro, podemos, por exemplo, repetir a crítica do ano passado ao constatar que os locais de atividades estão, novamente, restritos ao distrito de Barão Geraldo e o centro de Campinas. É claro que as dificuldades geográficas tornam-se intransponíveis diante da falta de apoio. Campinas é uma cidade enorme, mas não é de hoje que se escutam comentários a respeito da omissão, independente de suas causas, em relação a regiões periféricas da cidade das Andorinhas, por exemplo.
A abertura do festival acontecerá no próximo domingo, 12/02, e se estenderá das 16h às 21h com espetáculos, tanto adulto quanto infantil, um show de abertura e o esperado ponto de encontro como encerramento do dia. Entre erros e acertos, o Feverestival pode ser considerado um dos maiores eventos teatrais do nosso país, já que faz parte do calendário artístico da América Latina e é imprescindível aos grupos que buscam um olhar mais atento às produções e discussões em torno das artes cênicas atualmente e ao público em geral.
Cada vez mais carecemos de encanto. Perdemos a beleza em algum lugar, pelos cantos da vida, e nos acostumamos a viver com o amargor da solidão na boca. Temos a alma estraçalhada e estamos compactados: nos gabinetes, nas carteiras, nos confessionários e nas abas do navegador da internet. Padecemos de falta de afeto, apodrecemos de tédio e estamos reféns de qualquer coisa que aplaque, mesmo que momentaneamente, toda essa dor que o mundo nos oferece enquanto prêmio pela submissão. Somos os filhos da covardia, temos uma gravata tatuada na garganta e uma nota de dólar no altar. O mundo, meus caros, é insatisfação eterna cercada de água por todos os lados.
No cenário apocalíptico do nosso espírito, a única saída é um sorriso. Uma espécie de remédio que nasce na boca alheia e nos lembra de que ainda é possível reinventar o mundo, nem que seja por alguns dias. O encanto é, sim, um outro, e que seu canto ecoe por todos os cantos das Campinas num bonito festival de encontros.